Então, decidimos, não sei bem quando, começar a celebrar a passagem dos anos. Já não apenas as nossas, mas as do mundo. Uma pergunta ao robô de I.A. mais próximo certamente resolveria a dúvida com inquietante certeza, mas basta-nos, por agora, esta humana e imprecisa aproximação: sabendo que, até ao século XIX, não havia sequer relógios de pulso, não se está a ver o povo em grandes contagens decrescentes, reunido à volta da torre da igreja, pronto para pular de alegria à meia-noite em ponto. É uma coisa curiosa, parte daquela grande religião pagã sincrética em que vivemos hoje: atribuímos um poder ao tempo, como se algo distinguisse, verdadeiramente, o último domingo da segunda-feira seguinte. Como se não fosse uma segunda-feira como as outras. Como se o próprio domingo e a própria segunda-feira não fossem nomes – nomes que implicam regras e costumes – que damos a dias para os quais o pássaro olha exactamente da mesma forma, apardalado, desta vez, com a inesperada eclosão do fogo de artifício nos céus.

Os cães ficam muito assustados. Terá o réveillon sido uma invenção dos fabricantes de foguetes, em conluio com os produtores de vinho espumante e o poderoso lobby das uvas passas? E, no entanto, para quê negá-lo? Para quê recusar a energia que tamanha conspiração nos oferece, ano após ano, para começar de novo? Fazer de conta que pomos o contador da vida a zeros outra vez e voltar a fazer as mesmas coisas, mas melhor, sabendo o que já sabemos.

Geralmente, por volta do início da tarde de dia 1, já infringimos metade das resoluções que tínhamos para o ano inteiro: já não nos vamos levantar cedo todos os dias, já não vamos a tempo de beber menos, já não começamos o ano na praia (até porque, pelo que vemos na televisão, está ainda mais lotada do que em Agosto), já não vamos começar a correr (para onde, afinal?), já não vamos passar a fazer sempre pequenos-almoços saudáveis, nem arrancar com o yoga, a meditação, o tai chi e a escrita daquele romance imortal que fluirá, torrencial e triunfalmente, assim que resolvamos o problema de deitar cá para fora o primeiro parágrafo.

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O deus dos anos novos

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04.01.2024

Então, decidimos, não sei bem quando, começar a celebrar a passagem dos anos. Já não apenas as nossas, mas as do mundo. Uma pergunta ao robô de I.A. mais próximo certamente resolveria a dúvida com inquietante certeza, mas basta-nos, por agora, esta humana e imprecisa aproximação: sabendo que, até ao século XIX, não havia sequer relógios de pulso, não se está a ver o povo em grandes contagens decrescentes, reunido à volta da torre da igreja, pronto para pular de alegria à meia-noite em ponto. É uma coisa curiosa, parte daquela grande religião pagã sincrética em que vivemos hoje: atribuímos um poder ao........

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