Parecia uma conversa sobre abuso da tecnologia entre pessoas.
- Hoje em dia já sei, mas na altura não sabia que era crime.

A mulher apertava os braços como se tivesse frio, a juíza continuou:
- Imagine que outra pessoa tinha gravado a sua voz sem a sua autorização? Como é que via a sua conduta, se fosse a sua voz a ser gravada?
- Doutora, eu vou repetir o que disse...
- Dona Luzia, eu ouço à primeira. Mas peço-lhe mais uma vez: achava correcto que outra pessoa gravasse, sem o seu conhecimento, a sua voz a falar?
- Não, doutora, não achava correcto.

Havia uma desproporção entre o que eu ouvira, ao entrar na sala, e a gravidade, o medo na voz da mulher. Depois, comecei a perceber. A mulher, podologista, era mãe solteira, a filha tinha dez anos, a mulher começou a namorar alguém, e de súbito já havia uma psicóloga escolar e a Polícia Judiciária.
- E sabe o resultado do processo ao seu ex-namorado?, perguntou a advogada de Luzia.
- Ele ficou detido 11 meses e depois não sei mais. Creio que tenha sido arquivado.

A juíza queria chegar a uma confissão e conseguiu que Luzia admitisse tudo, menos a intenção criminosa. Mas seria a inspectora da Judiciária, também ela tecnologicamente, por internet, a contar os avanços e recuos do caso brutal. Disse que em 2020 houve uma denúncia por abuso sexual em relação à menor.

A criança e a mãe foram chamadas. O suspeito era o namorado da Luzia. Depois do primeiro interrogatório, na qual foi muito colaborante, à tarde a inspectora chegou à conclusão que era melhor falar de novo com ela. Também chamaram Jackson, que foi ouvido na parte da tarde.
- Curiosamente, a postura que ela agora tinha era radicalmente diferente. Uma postura muito mais agressiva, a contrariar tudo o que já nos tinha dito. Fiquei muito desgostada. Achava, e disse-lhe, que ela podia estar a prestar o crime de falsas declarações. Saí e transmiti à minha colega e chefe que estava muito desconfortável com o que se estava a passar. As próprias expressões pareciam coincidentes com o que o arguido tinha dito antes. Eu e a minha chefe dissemos-lhe que ela podia estar a colocar a filha em perigo. E percebemos, então, que ela tinha o telemóvel ligado no WhatsApp. Confrontámo-la com o facto de poder estar a conversar com o sr. Jackson. Apreendemos o telemóvel, interrogámo-la, fizemos até um printscreen do ecrã. E estava, de facto, a fazer gravações do que eu dizia e transmitia-as para o arguido, beneficiando-o!

- Qual foi a reacção dela quando soube que podia ter o telemóvel apreendido?, perguntou o procurador.
- No início permaneceu zangada, como já disse. Zangada.
- Mas ficou espantada, não ficou, achou que era permitido gravar?
- A primeira coisa que disse foi que não sabia que não podia estar a fazer aquilo. Mas depois de lhe dizermos que estava a colocar a filha em risco... e isto não é uma reacção diferente em relação ao que costuma acontecer em casos de abuso destes... ela começou a cair em si, começou a chorar, tornou-se outra vez colaborante. Quis proteger a filha e começou a perceber que ela própria teria sido manipulada por ele. Percebeu que ele lhe dissera coisas que não faziam sentido e também que era óbvio que não o podia mais favorecer.
Mas uma coisa é achar que não é correcto, outra achar que está a praticar um crime, alegou a advogada de Luzia.
- A nós, juristas, parece-nos evidente. Ao cidadão comum, não. Num tempo em que as pessoas estão com o telemóvel em todas as circunstâncias, não têm consciência de que o aparelho não deve ser utilizado, muito menos em instâncias judiciais e muito menos ainda para fazer o que fez.
Luzia chorava. Disse que todo o dinheiro que ganha a tratar os pés dos outros vai para a filha. Se tiver de pagar uma multa, não consegue.

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

QOSHE - Não só abuso telefónico - Rui Cardoso Martins
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Não só abuso telefónico

10 1
03.12.2023

Parecia uma conversa sobre abuso da tecnologia entre pessoas.
- Hoje em dia já sei, mas na altura não sabia que era crime.

A mulher apertava os braços como se tivesse frio, a juíza continuou:
- Imagine que outra pessoa tinha gravado a sua voz sem a sua autorização? Como é que via a sua conduta, se fosse a sua voz a ser gravada?
- Doutora, eu vou repetir o que disse...
- Dona Luzia, eu ouço à primeira. Mas peço-lhe mais uma vez: achava correcto que outra pessoa gravasse, sem o seu conhecimento, a sua voz a falar?
- Não, doutora, não achava correcto.

Havia uma desproporção entre o que eu ouvira, ao entrar na sala, e a gravidade, o medo na voz da mulher. Depois, comecei a perceber. A mulher, podologista, era mãe solteira, a filha tinha dez anos, a mulher começou a namorar alguém, e de súbito já havia uma psicóloga escolar e a Polícia Judiciária.
- E sabe o resultado do processo ao seu ex-namorado?, perguntou a advogada de........

© Jornal de Notícias


Get it on Google Play