Por enquanto, Lula está fazendo a coisa certa: recebe a bola quadrada e a entrega redonda. Antes que ela quique à sua frente, com rumo incerto, ele mata a pelota, põe no chão e sai tocando. Tudo o que se espera de um governante ou homem de Estado é que não receba crises pequenas e as passe adiante imensas, quase fora do controle. Também nesse caso, o petista é o antípoda de Jair Bolsonaro, que jamais perdeu a oportunidade de piorar o que já era ruim.
Embora os psicopatas vivam prometendo a seus fanáticos uma "revolta amanhã", as Forças Armadas não vão se meter numa tramoia golpista — ou já teriam se metido, o que também lhes seria catastrófico, não apenas ao país.
Colunistas do UOL
Lula já definiu com José Múcio Monteiro, futuro ministro da Defesa, os respectivos nomes dos comandantes militares. Optou pela saída a mais convencional possível, independentemente de buchichos sobre as afinidades literalmente eletivas deste ou daquele. Assume o comando do Exército o general Júlio Cesar de Arruda, atual chefe do Departamento de Engenharia e Construção. O tenente-brigadeiro do ar Marcelo Kanitz Damasceno comandará a Aeronáutica. Hoje, ele é chefe do estado-maior da Força. O almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen, atual comandante de Operações Navais, passa a liderar a Marinha.
Todos são os oficiais-generais mais antigos. Ou quase. Damasceno seria o segundo na lista, mas o primeiro, Renato Rodrigues de Aguiar Freire, foi designado para o Estado Maior das Forças Armadas, função que é exercida em rodízio pelas três Armas. Embora os militares prezem a assunção ao posto máximo do mais antigo entre os oficiais-generais, o chefe do Executivo não é obrigado a seguir a tradição da caserna. Se não o faz, os mais antigos, se preteridos para o comando, têm de passar para a reserva, o que implica novas promoções ao Alto-Comando.
Dado o modo como agem Lula e Múcio, não se cria instabilidade de nenhuma natureza. E se passa às Forças uma espécie de sinal de boa-vontade. E olhem que o ambiente está um tanto viciado. Baptista Júnior, comandante da FAB, está decidido a entregar o cargo ao mais antigo — justamente Damasceno, futuro nº 1 — antes do fim do fim do ano. Tentaram demovê-lo, mas foi inútil. Assim, é provável que a troca dos três comandos aconteça ainda neste mês, não em janeiro. É claro que há aí embutida uma espécie de afronta.
POR QUE TANTO AMOR?
Que coisa curiosa! O "mau militar" (segundo Geisel) Bolsonaro foi o único presidente que destituiu de uma só vez os respectivos comandantes das três Forças. Aconteceu no dia 30 de março do ano passado. Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica) saíram à esteira da solidariedade ao general Fernando Azevedo e Silva, demitido do Ministério da Defesa. Com o país vivendo os piores dias da segunda onda da Covid, o chefe exigia que o ministro e as Forças se alinhassem com ele em sua leitura da crise na Saúde, que, se levada a sério, tinha a perspectiva, sejamos claros, de um verdadeiro homicídio em massa.
Não era só isso. Ele queria que Azevedo e Silva desse a cabeça de Pujol — os outros dois poderiam ficar se quisessem. O ministro disse "não" outra vez. E aí foi para a rua. O então comandante do Exército sabia que era um dos pivôs da crise e decidiu sair. Seus pares se solidarizaram.
Braga Netto foi nomeado para a Defesa — e dali para candidato a vice. Posteriormente, Paulo Sérgio Nogueira, que, com reputação de legalista, recebera o Comando do Exército, foi escalado para a pasta. Seu comportamento como ministro se tornou tristemente célebre na relação com o Tribunal Superior Eleitoral, alimentando, ainda que de maneira velada, teorias conspiratórias sobre as urnas eletrônicas.
No dia 11 de novembro deste ano, sob o pretexto de criticar eventuais excessos de manifestantes inconformados com o resultado das eleições, os comandantes militares emitiram uma nota — como se fosse seu papel — em que confundiam pregação golpista com direito à livre manifestação em que ousavam fazer uma leitura muito própria sobre o papel dos Poderes da República. Outra óbvia herança maldita dessa gestão, pois, é a politização dos quartéis.
OS DEFENESTRADOS
O "capitão", note-se, parece ter certa paixão por destratar generais que foram chamados para o primeiro ou segundo escalões. Antes de Azevedo e Silva, já tinham sido defenestrados Santos Cruz (Secretaria-Geral); Rego Barros (porta-voz); Maynard Marques de Santa Rosa (Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência -- este se demitiu); Franklimberg de Freitas (Funai), Juarez Cunha (Correios), João Carlos Jesus Correia (Incra), Marco Aurelio Vieira (Secretaria Especial do Esporte) e Joaquim Silva e Luna (Petrobras).
Já imaginaram Lula a fazer gato e sapato de nove generais guindados a postos importantes do Executivo ou, então, a pressionar o ministro da Defesa pela destituição do comandante do Exército? Ainda que o mandatário tenha atendido aos clamores corporativistas da soldadesca na reforma da Previdência, a verdade é que a sua relação com os militares pode ser tachada de tudo, menos de respeitosa.
E Lula, que agora conduz com o devido cuidado a troca dos respectivos comandos? Foi o presidente que mais investiu no aparelhamento das Forças Armadas — e, como sempre, desafia-se aqui a que se evidencie o contrário. Também não vale o argumento surrado de que as restrições a seu nome se devem ainda a questões éticas oriundas das ilegalidades cometidas pela Lava Jato. Para tanto, seria preciso evidenciar que o pai de Flávio, em contraste, está destinado a virar estátua em homenagem à ética.
"Ah, Reinaldo, as restrições são oriundas lá da instalação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012..." É mesmo? Comissão que não puniu ninguém porque, de resto, nem tinha poderes para tanto? Sei não... Tudo indica que Bolsonaro despertou nos chamados "setores castrenses" a ideia de que poderiam voltar a comandar o país, mas por intermédio de eleições, não de golpe. Quando ele os convidou para golpear as eleições, perceberam que estavam numa sinuca: não tinham como realizar o feito, mas apostaram na sobrevida do "capitão". Deu errado.
É hora de os militares voltarem para os quartéis, atendo-se a suas funções constitucionais. Lula, insiste-se, tomou a decisão de evitar turbulências, no que fez bem. Cumpre agora que nós todos, como sociedade, por intermédio da luta política, comecemos a nos indagar que tipo de militar queremos: o que serve ao Estado brasileiro ou o que se subordina a projetos políticos? O debate tem de começar já.