Se é razoável não "entrar na pilha", como se diz, da provocação feita pelos três comandantes militares, transformando-os em protagonistas da cena política, em companhia "Duzmercáduz", é uma bobagem tentar encontrar um sentido virtuoso para a nota destrambelhada. Não há. Como juristas amadores, estão apenas sendo maus soldados, somando provocação barata ao misto de desídia e prevaricação com que assistem à ocupação, por arruaceiros golpistas, das respectivas áreas de segurança de quartéis.

Li a nota na sexta, e duas coisas me vieram à cabeça de imediato: o preâmbulo do AI-5 e a primeira estrofe de um soneto do poeta baiano Gregório de Matos (1636-1696):
"A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro."

Colunistas do UOL

Eis aí. Não conseguem garantir, nos termos exigidos pela disciplina, a segurança das instalações militares, mas pretendem, como a sua lamentável nota deixa claro, governar o Brasil.

Segue na integra o texto assinado pelo almirante de esquadra Almir Garnier Santos, comandante da Marinha; general de Exército Marco Antônio Freire Gomes, comandante do Exército, e tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica. Atentem para os trechos em destaque, em particular para aqueles que transcrevi em letras maiúsculas. Volto em seguida.

A ÍNTEGRA
Acerca das manifestações populares que vêm ocorrendo em inúmeros locais do País, a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira reafirmam seu compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro, COM A DEMOCRACIA E COM A HARMONIA POLÍTICA E SOCIAL DO BRASIL, ratificado pelos valores e pelas tradições das Forças Armadas, sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história.

A Constituição Federal estabelece os deveres e os direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas Instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional.

Nesse aspecto, ao regulamentar disposições do texto constitucional, por meio da Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, o Parlamento Brasileiro foi bastante claro ao estabelecer que: "Não constitui crime [...] a manifestação crítica aos Poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

Assim, são condenáveis tanto eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública; bem como quaisquer ações, de indivíduos ou de entidades, públicas ou privadas, que alimentem a desarmonia na sociedade.

A solução a possíveis controvérsias no seio da sociedade deve valer-se dos instrumentos legais do estado democrático de direito. Como forma essencial para o restabelecimento e a manutenção da paz social, cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que "Dele" emana, A IMEDIATA ATENÇÃO A TODAS AS DEMANDAS LEGAIS E LEGÍTIMAS DA POPULAÇÃO, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição Federal e da legislação.

Da mesma forma, reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade.

A CONSTRUÇÃO DA VERDADEIRA DEMOCRACIA pressupõe o culto à tolerância, à ordem e à paz social. As Forças Armadas permanecem vigilantes, atentas e focadas em seu papel constitucional na GARANTIA DE NOSSA SOBERANIA, DA ORDEM E DO PROGRESSO, SEMPRE EM DEFESA DE NOSSO POVO.

Assim, temos primado pela Legalidade, Legitimidade e Estabilidade, transmitindo a nossos subordinados serenidade, confiança na cadeia de comando, coesão e patriotismo. O foco continuará a ser mantido no incansável cumprimento das nobres missões de Soldados Brasileiros, tendo como pilares de nossas convicções a Fé no Brasil e em seu pacífico e admirável Povo.

RETOMO
Atente para trecho do preâmbulo do AI-5 (os destaques em letras maiúsculas são meus):
Considerando que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, ASSEGURASSE AUTÊNTICA ORDEM DEMOCRÁTICA, BASEADA NA LIBERDADE, NO RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, NO COMBATE À SUBVERSÃO E ÀS IDEOLOGIAS CONTRÁRIAS ÀS TRADIÇÕES DE NOSSO POVO, NA LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO, buscando, deste modo, "os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria" (...).

Sempre que homens armados pelo Estado — que se subordinam, na democracia, ao poder civil — resolvem falar a paisanos em nome da "AUTÊNTICA ORDEM DEMOCRÁTICA", há algo de errado com a dita-cuja. Essa expressão, que está no preâmbulo do AI-5, que instituiu a ditadura arreganhada no Brasil, aparece na mensagem dos comandantes militares, 54 anos depois, numa variante: "VERDADEIRA DEMOCRACIA", como se fosse tarefa dos militares definir o verdadeiro ou o autêntico nessa área. Se lhes for delegado tal papel, então já não se tem democracia nenhuma, nem falsa nem verdadeira, mas ditadura.

Era o caso no ano da desgraça de 1968. Ainda não é o caso no ano dos sortilégios de 2022. O AI-5, calculem, falava em "RESPEITO À DIGNIDADE HUMANA" E NO "COMBATE À SUBVERSÃO E ÀS IDEOLOGIAS CONTRÁRIAS ÀS TRADIÇÕES DO NOSSO POVO". Já os comandantes de agora preferem a "GARANTIA DE NOSSA SOBERANIA, DA ORDEM E DO PROGRESSO, SEMPRE EM DEFESA DE NOSSO POVO."

Sabem por que, a despeito das óbvias diferenças de contexto histórico, os textos são semelhantes? Porque militares têm pouca coisa a dizer sobre democracia. Não é que lhes faltem inteligência, entendimento, compreensão. Ocorre que outras são as suas tarefas. E sempre que se arvoram em teóricos da democracia, o que se tem é a expressão de uma tutela: real em 1968; pretendida agora.

A linguagem aparentemente suave da nota não deve enganar os incautos. Como evidencio acima, o preâmbulo do AI-5, que repete trecho do preâmbulo do AI-1, também é vazado em linguagem mansa, a despeito do terror que promove. Não creio que golpe àquela moda seja hoje possível, mas é preciso de pronto repudiar o desejo de tutela.

PODER MODERADOR?
Acrescente-se, ainda, nesse capítulo o emprego nada inocente, quando os comandantes se referem às Forças Armadas, da expressão "sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história". Mentira. Inexiste "Poder Moderador" no Brasil. Havendo contradição inelutável entre as pretensões do Três Poderes, cabe ao Judiciário a decisão, intérprete último que é da Constituição. Fosse atribuição das Forças Armadas dar a última palavra, então seríamos governados por um regime militar, de modo que, em vez de termos fardados a serviço da democracia, teríamos um arremedo de democracia a serviço de fardados.

Em outro post, tendo como referência o Código Penal, vou evidenciar as aberrações escritas pelos três senhores, evidenciando que os juristas amadores se comportaram como maus soldados. Arremato este artigo dando destaque a uma outra sutileza da patacoada escrita a seis mãos (ou mais).

FORÇAS ARMADAS OU MILÍCIAS DE ARRUACEIROS?
Notem que os senhores militares destacam, em primeiro lugar, o "compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro" e depois com a democracia. A "Constituição" só aparece no segundo parágrafo da nota absurda. Há, aí, obvia tentação intervencionista.

O primeiro compromisso das Forças Armadas tem de ser com a Constituição porque é ela que expressa os anseios do conjunto dos brasileiros, independentemente de ideologia ou de cor partidária.

Como resta evidente, os senhores militares, malbaratando a Carta e o Código Penal, consideram legítimos e legais atos criminosas. Ao se referir primeiro ao "povo" e só depois à sua expressão institucional, que é a Constituição, é claro que se mostram tocados pelo alarido de minorias extremistas e o interpretam como expressão da vontade de todos os brasileiros. Não por acaso, a nota classifica o berreiro de arruaceiros de "manifestações populares".

Ora, Forças Armadas que piscam para golpistas se oferecem como esbirros de fascistoides dispostos a pôr fim à ordem democrática. Renunciam à condição de "instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina", como quer a Constituição, para atuar como milícias ou esbirros de arruaceiros.

E ainda falta falar da interpretação porca que os três comandantes fizeram do Código Penal — e da Constituição.

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Nota pró-arruaça de militares revive AI-5 fora de época e remete a poema

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13.11.2022

Se é razoável não "entrar na pilha", como se diz, da provocação feita pelos três comandantes militares, transformando-os em protagonistas da cena política, em companhia "Duzmercáduz", é uma bobagem tentar encontrar um sentido virtuoso para a nota destrambelhada. Não há. Como juristas amadores, estão apenas sendo maus soldados, somando provocação barata ao misto de desídia e prevaricação com que assistem à ocupação, por arruaceiros golpistas, das respectivas áreas de segurança de quartéis.

Li a nota na sexta, e duas coisas me vieram à cabeça de imediato: o preâmbulo do AI-5 e a primeira estrofe de um soneto do poeta baiano Gregório de Matos (1636-1696):
"A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro."

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Eis aí. Não conseguem garantir, nos termos exigidos pela disciplina, a segurança das instalações militares, mas pretendem, como a sua lamentável nota deixa claro, governar o Brasil.

Segue na integra o texto assinado pelo almirante de esquadra Almir Garnier Santos, comandante da Marinha; general de Exército Marco Antônio Freire Gomes, comandante do Exército, e tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica. Atentem para os trechos em destaque, em particular para aqueles que transcrevi em letras maiúsculas. Volto em seguida.

A ÍNTEGRA
Acerca das manifestações populares que vêm ocorrendo em inúmeros locais do País, a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira reafirmam seu compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro, COM A DEMOCRACIA E COM A HARMONIA POLÍTICA E SOCIAL DO BRASIL, ratificado pelos valores e pelas tradições das Forças Armadas, sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história.

A Constituição Federal estabelece os deveres e os direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas Instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional.

Nesse aspecto, ao regulamentar disposições do texto constitucional, por meio da Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, o........

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