Os tais "mercáduz" deveriam aplaudir de pé a proposta de arcabouço fiscal entregue pelo presidente Lula ao Congresso. É um exemplo de responsabilidade com as contas públicas. Li em algum lugar algo assim: "Os mercados receberam com desconfiança..." Não que eu ache que o texto esteja próximo de enforcar criancinhas pobres com a tripa de idosos carentes, mas fico com a impressão, às vezes, de que só mesmo revivendo cenas de "O Triunfo da Morte", de Bruegel, o Velho, o espírito desses dessa gente saciaria sua fome de almas... Ou, ao menos, daqueles ouvidos pela imprensa...

Alguns tentaram fazer escarcéu com as despesas que ficariam fora da nova regra fiscal. Pode ser ignorância. Pode ser má-fé. Pode ser uma coisa alimentando a outra. Fica fora o que fora já estava, mesmo na vigência do falido teto de gastos. Como vocês verão, são disposições constitucionais que não podem ser reguladas por Lei Complementar. Ademais, há "despesas" que, na verdade, são "receitas".

Colunistas do UOL

A DESPESA
A verdade é que os únicos com direito a reclamar são as esquerdas e um pedaço do PT. A razão é simples: embora seja um texto que garante o crescimento real de despesas (acima da inflação), nos marcos já anunciados -- 70% do percentual de crescimento da receita --, tem-se, inequivocamente, um ajuste que seria chamado de "liberal" em qualquer lugar do mundo. Observem que não faço juízo de valor. É apenas uma constatação. Aplaudam de pé, senhores "Mercáduz". Opa! Esqueci. Boa parte dessa gente não tem ideia do que seja liberalismo porque patologicamente reacionária.

Está lá no Artigo 9º:
Art. 9º Para os exercícios de 2024 a 2027:
I - o intervalo de crescimento real da despesa a que se refere o inciso I do § 1º do art. 4º observará limite máximo de 2,5% a.a. (dois inteiros e cinco décimos por cento ao ano) e limite mínimo de 0,6% a.a. (seis décimos por cento ao ano);
II - o crescimento real da despesa previsto no caput do art. 4º será cumulativo e limitado a 70% (setenta por cento) da variação real da receita apurada na forma prevista nos § 2º e § 4º do art. 4º; e

III - o intervalo de tolerância de que trata o inciso II do caput do art. 2º será convertido em valores correntes, de menos 0,25 p.p. (vinte e cinco centésimos ponto percentual) e de mais 0,25 p.p. (vinte e cinco centésimos ponto percentual) do Produto Interno Bruto previsto no respectivo Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias.

A RECEITA
O arcabouço, como está, é extremamente restritivo na definição do que é receita primária. Vale dizer: nenhuma forma de recurso extraordinário vai impactar de forma permanente os gastos. Estabelece o Parágrafo 2º do Artigo 4º:
§ 2º Para os fins deste artigo, será considerada a receita, na forma a ser regulamentada em ato do Ministro de Estado da Fazenda, resultante da receita primária total do Governo Central, deduzidos os seguintes itens:
I - receitas primárias de concessões e permissões;
II - receitas primárias de dividendos e participações;
III - receitas primárias de exploração de recursos naturais; e
IV - transferências legais e constitucionais por repartição de receitas primárias, descontadas as decorrentes das receitas de que tratam os incisos I a III.

RECURSOS EXTRAS E INVESTIMENTOS
O texto é muito cuidadoso ao não fazer das receitas extraordinárias uma armadilha. Superávits que excederem a margem superior do que for projetado poderão servir para ampliar dotações orçamentárias do exercício seguinte, mas sem impactar de forma permanente a despesa. Define o Artigo 5º:
Art. 5º Caso o resultado primário do Governo Central exceda ao limite superior do intervalo de tolerância de que trata o inciso II do caput do art. 2º, o Poder Executivo federal poderá ampliar as dotações orçamentárias, para o exercício subsequente, em valor equivalente a até o montante excedente, hipótese em que as despesas ampliadas não serão computadas na meta de resultado primário prevista no art. 2º.
§ 1º Na hipótese de ampliação das dotações em decorrência do disposto no caput, os respectivos valores serão destinados a investimentos, estabelecidos nos termos do disposto no art. 6º.
§ 2º O aumento de dotações de que trata o § 1º não será contabilizado no valor mínimo de que trata o art. 6º.

E os investimentos não têm limites? Têm, conforme o Artigo 10º
Art. 10. Para os exercícios de 2025 a 2028, as dotações orçamentárias a que se refere o caput do art. 5º ficam limitadas até o montante de R$ 25.000.000.000,00 (vinte e cinco bilhões de reais), corrigido pela variação acumulada do IPCA ou de outro índice que vier a substituí-lo, calculada entre janeiro de 2023 a dezembro do exercício anterior a que se referir a Lei Orçamentária Anual.

AS EXCEÇÕES E OS BANCOS PÚBLICOS
Ensaia-se algum bochicho porque o Parágrafo 2º do Artigo 3º traz uma lista de despesas fora do novo teto. São treze itens, alguns deles que se desdobram. Quem não ler atentamento o que está lá, com a Constituição à mão ou na tela, ficará com a impressão de que se vai arrombar o caixa. Falso como nota de R$ 3. A maioria do que lá vai diz respeito a transferências constitucionais -- e, portanto, não podem ser mudadas por Lei Complementar. Mas não é nada que comprometa a proposta.

Há mais: alguns itens são, na verdade, receitas disfarçadas de despesas. Como assim? Tomem estes como exemplos:
V - as despesas com projetos socioambientais ou relativos às mudanças climáticas custeadas com recursos de doações, e as despesas com projetos custeados com recursos decorrentes de acordos judiciais ou extrajudiciais firmados em decorrência de desastres ambientais;

VI - as despesas das universidades públicas federais, das empresas públicas da União prestadoras de serviços para hospitais universitários federais e das instituições federais de educação, ciência e tecnologia, vinculadas ao Ministério da Educação, e demais instituições científicas, tecnológicas e de inovação custeadas com receitas próprias, de doações ou de convênios, contratos ou outras fontes, celebrados com os demais entes federativos ou entidades privadas;

VII - as despesas custeadas com recursos oriundos de transferências dos demais entes federativos para a União destinados à execução direta de obras e serviços de engenharia;

Ora, doações, recursos próprios e transferências oriundas de outros entes da Federação não saíram do Orçamento. Se uma universidade pública consegue gerar receita própria, a dita-cuja não pode se transformar num limitador da sua despesa. Não faria sentido.

ATENÇÃO!
Há quem esteja antevendo problema onde há, na verdade, uma resposta saneadora. O Inciso XI diz que estão fora do limite de gastos:
XI - as despesas com aumento de capital de empresas estatais não financeiras e não dependentes;

Esse "não financeiras" indica que entram, sim, no novo modelo de teto de gastos eventuais aportes a bancos públicos, como Banco do Brasil, CEF e BDES.

Coube a Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, lembrar que o alarde que certos setores da imprensa estão fazendo com as chamadas exceções é infundado. Destacou que são iguais as que já existem hoje:
"Não há nenhum gasto fora da regra que já não existisse ou não tenha sido endurecido. Por isso vamos tratar com muita transparência, debate amplo, discussão franca".

Para Lira, a lei é importante para dar previsibilidade ao país:
"Nossa confiança é plena e teremos bom resultado, uma boa lei, que servirá de base para outras medidas que se seguirão, com a ajuda de todos".

O relator da matéria na Câmara será definido nesta quarta. Os mais cotados são Claudio Cajado (PP-BA), Marcelo Queiroz (PP-RJ) e Fernando Monteiro (PP-PE).

E A DEFINIÇÃO DOS SUPERÁVITS?
A definição das metas de superávit primário não está na Lei Complementar do tal arcabouço fiscal. O parágrafo 2º traz a disciplina para a sua definição em novo texto: um anexo da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Transcrevo:
Art. 2º O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias conterá Anexo de Metas Fiscais que incluirá, para o exercício a que se referir e para os três exercícios seguintes, em valores correntes e constantes:
I - metas anuais para o resultado primário do Governo Central para os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União;
II - intervalos de tolerância para as metas de que trata o inciso I; e
III - marco fiscal de médio prazo, com projeções para os principais agregados fiscais que compõem os cenários de referência.

§ 1º O Anexo de Metas Fiscais que acompanhar o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias evidenciará, no período de dez anos, o efeito esperado das metas de que trata o inciso I do caput sobre a trajetória da dívida pública.

§ 2º A Lei de Diretrizes Orçamentárias definirá a meta de resultado primário do Governo Central para o exercício a que se referir e a projeção para os três anos seguintes.

§ 3º No Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias encaminhado no primeiro ano da legislatura, o Anexo de Metas Fiscais estabelecerá critérios para a variação da despesa primária definidos com base no mecanismo previsto no art. 4º.

Antes de fechar o quarto mês, mesmo enfrentando tantos sortilégios, o governo Lula pode dar ao país um modelo fiscal seguro e de longa duração. E sem enforcar criancinhas pobres com a tripa de idosos carentes.

QOSHE - Marco fiscal liberal freia gasto sem enforcar infantes com tripas de idosos - Reinaldo Azevedo
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Marco fiscal liberal freia gasto sem enforcar infantes com tripas de idosos

7 19
19.04.2023

Os tais "mercáduz" deveriam aplaudir de pé a proposta de arcabouço fiscal entregue pelo presidente Lula ao Congresso. É um exemplo de responsabilidade com as contas públicas. Li em algum lugar algo assim: "Os mercados receberam com desconfiança..." Não que eu ache que o texto esteja próximo de enforcar criancinhas pobres com a tripa de idosos carentes, mas fico com a impressão, às vezes, de que só mesmo revivendo cenas de "O Triunfo da Morte", de Bruegel, o Velho, o espírito desses dessa gente saciaria sua fome de almas... Ou, ao menos, daqueles ouvidos pela imprensa...

Alguns tentaram fazer escarcéu com as despesas que ficariam fora da nova regra fiscal. Pode ser ignorância. Pode ser má-fé. Pode ser uma coisa alimentando a outra. Fica fora o que fora já estava, mesmo na vigência do falido teto de gastos. Como vocês verão, são disposições constitucionais que não podem ser reguladas por Lei Complementar. Ademais, há "despesas" que, na verdade, são "receitas".

Colunistas do UOL

A DESPESA
A verdade é que os únicos com direito a reclamar são as esquerdas e um pedaço do PT. A razão é simples: embora seja um texto que garante o crescimento real de despesas (acima da inflação), nos marcos já anunciados -- 70% do percentual de crescimento da receita --, tem-se, inequivocamente, um ajuste que seria chamado de "liberal" em qualquer lugar do mundo. Observem que não faço juízo de valor. É apenas uma constatação. Aplaudam de pé, senhores "Mercáduz". Opa! Esqueci. Boa parte dessa gente não tem ideia do que seja liberalismo porque patologicamente reacionária.

Está lá no Artigo 9º:
Art. 9º Para os exercícios de 2024 a 2027:
I - o intervalo de crescimento real da despesa a que se refere o inciso I do § 1º do art. 4º observará limite máximo de 2,5% a.a. (dois inteiros e cinco décimos por cento ao ano) e limite mínimo de 0,6% a.a. (seis décimos por cento ao ano);
II - o crescimento real da despesa previsto no caput do art. 4º será cumulativo e limitado a 70% (setenta por cento) da variação real da receita apurada na forma prevista nos § 2º e § 4º do art. 4º; e

III - o intervalo de tolerância de que trata o inciso II do caput do art. 2º será convertido em valores correntes, de menos 0,25 p.p. (vinte e cinco centésimos ponto percentual) e de mais 0,25 p.p. (vinte e cinco centésimos ponto........

© UOL


Get it on Google Play