Faz tempo que o Apocalipse rende fama, ao menos. Lendo isso e aquilo, vi-me compelido, mas resisti a antever que o governo Lula iria acabar antes de começar.

A PEC da Transição, aprovada em dezembro, estaria a anunciar que o gestor fiscalmente responsável que chegara ao poder em 2003 tinha ficado para trás. O país teria de se haver com um gastador irresponsável, ressentido, ultrapassado, que armava um déficit primário neste ano de pelo menos R$ 230 bilhões — ou 2% do PIB. Fato: deve ficar abaixo de R$ 100 bilhões.

O economista de uma empresa privada que previsse em dezembro um rombo de "2,3 x", obrigando-se a rever a conta, três meses depois, para menos de "1 x", levaria um pé nos fundilhos. O capital não aceita certos desaforos. Quando se trata de contas públicas, no entanto, o erro estúpido pode fazer a fama de "analista independente", que não se deixa enredar pela conversa mole de governantes, à diferença desses "sabujos por aí"...

Já empossado, o presidente mirou na "pornográfica" (apud Josué Gomes) taxa de juros, e soaram as trombetas do caos. Não faltou quem costeasse o alambrado de um possível impeachment. Como é mesmo? Juros futuros subiram. O dólar disparou —e o petista foi acusado até de fabricar inflação, o que teria de ser corrigido pelo mal que ele combatia. Lula continua a criticar o despropósito de uma Selic a 13,75%. E, no entanto, o humor mudou.

Veio o arcabouço fiscal. Ainda que sua estrutura impusesse, como impõe, um crescimento da despesa inferior ao da receita, faltava, entendia-se, aquele componente a evidenciar que não se tratava de um desses populismos que enchem a pobrada de benesses... "Cadê o corte de gastos?", tonitruou-se. De quais? Sempre falta essa parte. Haveria Congresso para aprová-lo?

"Uzmercáduz" começam a se dar conta de que o tal arcabouço é até bastante conservador. A ordem da hora é atacar a esquerda do PT, que estaria fazendo cobranças indevidas a Fernando Haddad, como se isso fosse algo estranho à vida partidária. André Esteves, presidente do Conselho de Administração do BTG Pactual, antevê bons momentos. Banqueiros outros já me haviam confidenciado que consideravam o texto virtuoso —ressalvando que a palavra final será do Congresso. Raramente se errou com tanta pompa e arrogância. Erro é a hipótese generosa.

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Li há pouco um desses textos biliosos apontando que um dos males desse governo é a volta dos juros subsidiados do BNDES. Nesses três meses e meio, não se celebrou nada no gênero. Espero que ainda venha. Sabem como é, banco de fomento... Vou aplaudir ou vaiar a depender de quem contraia o empréstimo. Ah, sim: resta o juro especial ao agro. Vamos acabar com ele? EUA e Europa recorrem a subsídios para se defender da concorrência chinesa de dois modos: juros negativos e grana na veia. Com a "Lei dos Chips", Joe Biden meteu US$ 52,7 bilhões de grana pública para atrair empresas para o Arizona. Perguntem à Taiwan Semiconductor Manufacturing Co, conhecida por TMSC. O, sei lá como chamar, "neoliberalismo" nativo ainda concorrerá com a Igreja Católica Siríaca no critério "localismo de resistência". Com a devida vênia a essa igreja, não à nossa seita, que fala o aramaico econômico.

Adicionalmente, convém olhar para a Câmara. O "centrão", como se conheceu um dia, está virando outra coisa. A oposição para valer ao governo se resume àquela gente exótica que produz barulho e constrangimento na Câmara, o que está levando à formação de um grupo de "moderados" do PL, que tem a maior bancada (99 deputados), mas não integra bloco nenhum. O PP de Arthur Lira e Ciro Nogueira está se juntando ao PSB de Geraldo Alckmin e ao PDT. Mas e o caos?

A antevisão mais famosa do fim da história não é a de Hegel. Nem a de Francis Fukuyama. Jesus, por meio de João, emplacou a mais espetaculosa no Livro da Revelação. Tantos são os sortilégios antes de um presumível novo amanhecer, que "apocalipse" virou sinônimo daquilo que, afinal, está mesmo lá: o fim dos tempos conforme conhecidos. A linguagem apocalíptica é também um estilo e não se restringe ao proselitismo religioso. O ideológico costuma ser bastante agressivo, não deixando margem para dúvida. Nem quando "2,3 x" viram menos de "1 x". Sem nem pedido de desculpas à aritmética que seja.

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Até agora, apocalípticos sobre o governo Lula perdem largamente para os fatos

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14.04.2023

Faz tempo que o Apocalipse rende fama, ao menos. Lendo isso e aquilo, vi-me compelido, mas resisti a antever que o governo Lula iria acabar antes de começar.

A PEC da Transição, aprovada em dezembro, estaria a anunciar que o gestor fiscalmente responsável que chegara ao poder em 2003 tinha ficado para trás. O país teria de se haver com um gastador irresponsável, ressentido, ultrapassado, que armava um déficit primário neste ano de pelo menos R$ 230 bilhões — ou 2% do PIB. Fato: deve ficar abaixo de R$ 100 bilhões.

O economista de uma empresa privada que previsse em dezembro um rombo de "2,3 x", obrigando-se a rever a conta, três meses depois, para menos de "1 x", levaria um pé nos fundilhos. O capital não aceita certos desaforos. Quando se trata de contas públicas, no entanto, o erro estúpido pode fazer a fama de "analista independente", que não se deixa enredar pela conversa mole de governantes, à diferença desses "sabujos por aí"...

Já empossado, o presidente mirou na "pornográfica" (apud Josué Gomes) taxa de juros, e soaram as trombetas do caos. Não faltou quem costeasse o alambrado de um possível impeachment. Como é mesmo? Juros futuros subiram. O dólar disparou —e o petista foi acusado até de fabricar inflação, o que teria de ser corrigido pelo mal que ele combatia. Lula continua a criticar o despropósito de uma Selic a 13,75%. E, no entanto, o humor mudou.

Veio o arcabouço fiscal. Ainda que sua estrutura........

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