Desde março de 2015 venho convivendo diariamente com mulheres e homens de mais de 90 anos que não perderam a capacidade de brincar. Ou melhor, que passaram a brincar muito mais na velhice. Exatamente por isso, resolvi ler, estudar e escrever sobre a importância de dar risadas e de brincar na velhice na minha pesquisa de pós-doutorado em psicologia social sobre envelhecimento, autonomia e felicidade.

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Quanto mais convivo com meus amigos nonagenários, mais acredito que nunca deixamos de ser a criança que um dia nós fomos. E que a nossa criança interior ama brincar. Mas brincar de quê?

Meus melhores amigos, Guedes e Thais, de 98 anos, adoram brincar, todos os dias, de um joguinho de palavras que inventei: com as letras de uma única palavra, temos que formar outras palavras com o máximo de combinações. Por exemplo, com as letras da palavra "pátria", Guedes fez parati, pirata, pitara, raptai, partia, apitar, praia, prata, apta, tapa e mais 58 palavras diferentes. Ele é invencível no nosso joguinho de palavras: ganha 99% das vezes.

Desde 15 de março de 2020, com o início da pandemia, Guedes e Thais passaram a me telefonar todos os dias para brincar com as palavras, ler pensamentos e trechos de livros, cantar e conversar. As risadas gostosas dos meus melhores amigos alimentam a minha alma e dão significado à minha vida.

Agora, como estou mergulhada na minha pesquisa de pós-doutorado, resolvi rever "Só dez por cento é mentira", documentário de 2008 do diretor Pedro Cezar, sobre a vida e a obra do poeta Manoel de Barros.

"Tenho uma confissão a fazer: noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira", revelou o poeta, aos 90 anos. "A minha poesia é inventada, mas é absolutamente verdade... tudo o que não invento, é falso."

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Escrevendo com um lápis nos seus 200 ou 300 bloquinhos, Manoel de Barros inventou o "dialeto manuelês", a "língua dos bocós e dos idiotas". "Eu falo e escrevo absurdez". "De dentro de mim não saio nem pra pescar". "Eu não quero dar informações; eu quero dar encantamento".

"Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas)

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado e chorei.

Sou fraco para elogios."

Certa vez, pediram que o poeta escrevesse sobre sua mocidade e velhice. "Eu declarei que só tive infância. Eu só sei escrever sobre a minha infância."

"Minha infância passei em uma fazenda no Pantanal. Nesse lugar o tempo era parado... Eu não era solitário. Tinha três irmãos. A gente fabricava os nossos brinquedos... A gente inventava brinquedos o tempo todo. Agora eu invento brinquedos com palavras. Um vício que eu trouxe de lá."

"No quintal a gente gostava de brincar com palavras mais do que de bicicleta. Principalmente porque ninguém possuía bicicleta." "A palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo"

Ele viveu o período mais fértil e produtivo de sua vida depois dos 80 anos, publicando dez livros.

"Eu sou o poeta que mais vende livros no Brasil, isso eu não tenho dúvida. Eu tenho muito orgulho de ser lido e de ser amado através da leitura dos meus livros. Eu sinto que sou amado por todas as pessoas que me leem."

Manoel de Barros morreu em 13 de novembro de 2014, aos 97 anos.

"O tempo só anda de ida.

A gente nasce cresce amadurece envelhece e morre.

Pra não morrer tem que amarrar o tempo no poste.

Eis a ciência da poesia:

Amarrar o tempo no poste."

Assisti três vezes a "Só dez por cento é mentira", assim como já reli incontáveis vezes os poemas de Manoel de Barros, para ver se consigo aprender "a arte de brincar com as palavras".

Não tive brinquedos quando criança e não consigo me lembrar de nenhuma brincadeira dentro e fora de casa. Só de gritos, brigas e surras. Os únicos brinquedos que eu tive foram os livros do meu pai. Aos quatro anos, já gostava de dar aulas e de ser professora, mas não era uma mera brincadeira: eu realmente ensinava crianças, adultos e velhos a ler e escrever. Depois, aos 16 anos, comecei a escrever obsessivamente nos meus diários e não parei até hoje. Foi assim que me tornei antropóloga, pesquisadora e escritora.

Agora, buscando construir a minha própria "bela velhice", além de aprender com meus amigos nonagenários a brincar e dar risadas, estou começando a aceitar que, apesar de não ter brincado na infância e adolescência, estou conseguindo ser capaz de inventar "a arte de amar –e de chorar— com as palavras".

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A arte de brincar com as palavras

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03.04.2024

Desde março de 2015 venho convivendo diariamente com mulheres e homens de mais de 90 anos que não perderam a capacidade de brincar. Ou melhor, que passaram a brincar muito mais na velhice. Exatamente por isso, resolvi ler, estudar e escrever sobre a importância de dar risadas e de brincar na velhice na minha pesquisa de pós-doutorado em psicologia social sobre envelhecimento, autonomia e felicidade.

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Desde 15 de março de 2020, com o início da pandemia, Guedes e Thais passaram a me telefonar todos os dias para brincar com as palavras, ler pensamentos e trechos de livros, cantar e conversar. As risadas gostosas dos meus melhores amigos alimentam a minha alma e dão significado à minha vida.

Agora, como estou mergulhada na minha pesquisa de pós-doutorado, resolvi rever........

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