A apresentação de Cuca como novo treinador do Corinthians já entra para a história como uma infâmia.

Desde o anuncio da contratação, as mobilizações de protesto puderam ser ouvidas em alto e bom som.

Condenado por envolvimento no estupro de uma criança de 13 anos em 1987 na Suíça, Cuca tem levado os protestos com ele para onde vai.

Colunistas do UOL

Se na década de 80 o crime passou quase ao largo, hoje já temos, como sociedade, alguma consciência da gravidade.

Cuca chegou para a entrevista de apresentação nesse 21 de abril sabendo que haveria perguntas sobre o caso de Berna em 1987.

Foi preparado para fazer um discurso de "sou aliado da causa, tenho filhas, quero um mundo melhor, sei que a vítima não sou eu, contem comigo etc etc etc". Pegou aqui e ali umas palavras de ordem dos movimentos feministas e foi soltando elas durante a entrevista.

Mas, para sorte de Cuca, foram feitas poucas perguntas sobre o caso e não houve a vontade de detalhar suas respostas, pedir mais explicações nem nada parecido.

Em resumo, Cuca disse que nada fez e, por nada ter feito, não deve desculpas a ninguém.

Mas vejamos: ele também disse que sim, houve "ato sexual com vulnerável" no ambiente em que estava.

Disse não ter lembrança daquela tarde, mas em seguida descreveu com miudezas de detalhe o quarto onde o crime ocorreu.

Ele estava presente, temos aqui um fato.

Viu? Não viu? Ouviu? Não ouviu? Participou?

Não sabemos. Ele não foi questionado sobre detalhes na coletiva.

Agarrou-se ao fato de não ter sido identificado pela vítima nas audiências que se seguiram à denúncia.

É importante mesmo esse dado, mas há outros que entram em conflito com ele. Houve perícias, Cuca ficou preso por um mês antes de voltar ao Brasil, houve depoimentos, houve a defesa dos acusados e, ao final, houve condenação. Então a parte do "a vítima não me reconheceu" perde forças.

Também sabemos que vítimas de estupro coletivo podem não reconhecer o rosto de seus agressores dado o tamanho do trauma.

E sabemos, porque essa parte da história não está em disputa, que houve uma criança de 13 anos que foi estuprada num quarto de hotel em Berna com quatro jogadores do Grêmio presentes - Cuca entre eles.

Quando Cuca diz que não fez nada ele está certo: tomando-se como verdade seu depoimento de que ele não tocou na menina, então ele não fez nada como berrar, chamar a polícia, sair pedindo ajuda pelos corredores, esmurrar os estupradores, libertar a criança.

Ah, mas não houve provas de violência física.

É assim que as coisas podem acontecer: a vítima fica paralisada.

Para uma criança nessas condições, o tempo para.

É, imagino, a sensação que vem com a morte. É, na verdade, um tipo de morte.

Então, o "não fazer nada" seria, nessa situação, um horror bastante profundo.

Cuca estava no quarto em forma de L, como ele descreveu na coletiva, e nada escutou?

Viu uma criança entrando e praticando atos sexuais com seus colegas e seguiu fazendo o quê? Dobrando camisetas para guardar no armário? Arrumando a cama? De joelhos rezando para Nossa Senhora?

Dois anos depois do crime, o jornal Der Bund, de Berna, publicou uma matéria detalhando o que teria acontecido naquela tarde.

Como o processo corre em segredo de justiça, não é possível saber se o que está escrito ali consta dos autos.

Na matéria, ficamos sabendo que a menina havia tentado se matar logo depois do estupro e que estaria sofrendo de transtornos psicológicos como consequência do trauma.

Se Cuca, um devoto de Nossa Senhora, soubesse disso será que ele a teria procurado para dizer que estava presente e então pedir desculpas por não ter feito nada? (Outra vez, estou aqui considerando o depoimento do próprio Cuca ,que reconheceu que estava no mesmo ambiente quando o "ato sexual com vulnerável" ocorreu.

Só para deixar claro: ato sexual com vulnerável que em seguida recorre à polícia para dizer que foi abusada chama estupro.

A mesma matéria do Der Bund de 1989 diz que a perícia teria encontrado esperma de Cuca e de Eduardo, outro jogador do grupo dos condenados pelo crime, no corpo da menina.

O que sabemos de fato: a história que Cuca conta é muito diferente da história vivida pela criança abusada.

E sabemos também que sexo com criança é pedofilia.

Mas então vamos simplesmente sentenciar Cuca até o fim dos tempos, as pessoas não têm direito a tentar seguir a vida?

Bem, talvez a vida dessa criança tenha acabado naquela tarde.

Eu sinceramente torço para que ela tenha conseguido se tornar uma mulher forte a despeito do trauma.

É o caminho que todas nós temos que fazer nessa vida. É isso ou desistir desse mundo que toma nossos corpos por objetos e tritura diariamente nossa dignidade.

Quanto a Cuca, se ele não reconhecer o horror dessa história e não se implicar nela, é provável que haja para sempre protestos por onde ele passar.

O que ele poderia fazer para que pudéssemos começar a superar nosso nojo?

Primeiro, antes de mais nada, reconhecer que houve um crime, que houve uma vítima e que o que aconteceu está na dimensão do indizível, do inominável, do grotesco.

Não reconhecer a gravidade do que aconteceu naquele quarto em Berna é ofender e humilhar todas as mulheres que o escutam falar.

Depois, e ainda levando em conta sua versão dos fatos, poderia falar que sente vergonha do que fez ou deixou de fazer.

Que hoje entende que ele foi covarde por não ter feito nada, que reza todos os dias para tentar superar aquela tarde da infâmia, que reza pela vida da menina, que sai da cama querendo ser um homem melhor.

Que ele sabe que nossa sociedade é machista, que busca compreender tudo o que o machismo faz, que o Cuca de 24 anos é um Cuca que o deixa constrangido, que entende que crimes sexuais praticados contra crianças têm números de uma guerra, que uma mulher é estuprada a cada oito minutos e que esses dados ainda são sub-notificados, que estamos numa sociedade que responsabilizar a mulher e a criança pelos estupros que sofrem, que nessa sociedade a farra de um é a morte do outro etc etc etc.

Poderia dizer que quer se reunir com as torcidas femininas e feministas do Corinthians. Quer escutá-las. Quer aprender e evoluir.

Queremos, portanto, que Cuca se implique no escândalo de Berna.

Dizer que não fez nada é um tapa em nossas caras porque, nesse caso, o "não fazer nada" é tão grotesco quanto o abuso.

E nesse cenário, dizer que não deve desculpas é um soco em nossos estômagos.

O presidente Duilio Monteiro também precisaria vir a público responder algumas perguntas sobre a contratação, sobre o que pensa do machismo praticado por alguns de seus conselheiros, sobre o que estão berrando as torcedoras corintianas revoltadas com a contratação, sobre quantas camisas com a frase "respeita as minas" já foram vendidas.

Os patrocinadores, Nike inclusive, deveriam igualmente nos dar satisfações. Somos nós, afinal, que consumimos os produtos das marcas que são parceiras do Corinthians.

Um dos patrocinadores até soltou uma nota miudinha, mal escrita e vazia de conteúdo a respeito da suposta igualdade de direitos entre homens e mulheres.

Está tudo errado. Absolutamente tudo errado do começo ao fim.

Ser homem deveria passar por encarar de frente todas essas questões, não escapar de perguntas, não evitar nossos questionamentos e olhares.

Mas nesse mundo do avesso ser homem é provar sua masculinidade abusando coletivamente de nossos corpos.

QOSHE - O que queremos de Cuca - Milly Lacombe
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O que queremos de Cuca

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22.04.2023

A apresentação de Cuca como novo treinador do Corinthians já entra para a história como uma infâmia.

Desde o anuncio da contratação, as mobilizações de protesto puderam ser ouvidas em alto e bom som.

Condenado por envolvimento no estupro de uma criança de 13 anos em 1987 na Suíça, Cuca tem levado os protestos com ele para onde vai.

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Se na década de 80 o crime passou quase ao largo, hoje já temos, como sociedade, alguma consciência da gravidade.

Cuca chegou para a entrevista de apresentação nesse 21 de abril sabendo que haveria perguntas sobre o caso de Berna em 1987.

Foi preparado para fazer um discurso de "sou aliado da causa, tenho filhas, quero um mundo melhor, sei que a vítima não sou eu, contem comigo etc etc etc". Pegou aqui e ali umas palavras de ordem dos movimentos feministas e foi soltando elas durante a entrevista.

Mas, para sorte de Cuca, foram feitas poucas perguntas sobre o caso e não houve a vontade de detalhar suas respostas, pedir mais explicações nem nada parecido.

Em resumo, Cuca disse que nada fez e, por nada ter feito, não deve desculpas a ninguém.

Mas vejamos: ele também disse que sim, houve "ato sexual com vulnerável" no ambiente em que estava.

Disse não ter lembrança daquela tarde, mas em seguida descreveu com miudezas de detalhe o quarto onde o crime ocorreu.

Ele estava presente, temos aqui um fato.

Viu? Não viu? Ouviu? Não ouviu? Participou?

Não sabemos. Ele não foi questionado sobre detalhes na coletiva.

Agarrou-se ao fato de não ter sido identificado pela vítima nas audiências que se seguiram à denúncia.

É importante mesmo esse dado, mas há outros que entram em conflito com ele. Houve perícias, Cuca ficou preso por um mês antes de voltar ao Brasil, houve depoimentos, houve a defesa dos........

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