Tenho na cabeça uma frase para a qual adoraria dar o crédito mas vou ficar devendo porque não achei mais a quem creditar: a narrativa está para a verdade assim como uma roupa larga está para o corpo. Pode até se aproximar da pele, mas não conta a história completa.

Desde a vitória de Lula contra Jair Bolsonaro escutamos a narrativa de que foi uma vitória apertada: apenas dois milhões de votos.

Colunistas do UOL

No dia da eleição do segundo turno, lembro de ter tido a sensação, vendo as imagens de pessoas impedidas de votar no nordeste brasileiro, de que aqueles absurdos e estranhíssimos impedimentos do fluxo de eleitores seriam esquecidos rapidamente fosse qual fosse o resultado.

Eu não estava errada.

Até houve, nos dias seguintes ao final da eleição, quem tivesse feito as contas em busca de uma verdade difícil de quantificar a respeito de quantos votos Lula teria perdido com os bloqueios em rodovias do Nordeste.

Sabíamos, de imediato, que as pessoas que estavam sendo impedidas de votar eram eleitores de Lula: chegavam imagens, relatos e até depoimentos de eleitores que, temerosos, sequer saíram de suas casas para votar. Ou seja: seria uma conta impossível de ser alcançada.

Tudo isso ia cair no arcabouço - para usar palavra da moda - da especulação e do negacionismo não estivéssemos começando a desvendar os fatos.

A PF agora descobriu um boletim de inteligência produzido pelo governo Bolsonaro que continha amplo levantamento dos locais onde Lula havia sido mais votado no primeiro turno. Até aí, nada de mais, certo?

Só que há fortes indícios de que o levantamento teria servido para que o então ministro Anderson Torres, em parceria com a PRF, colocasse de pé um plano de dificultar a chegada de eleitores de Lula a suas zonas eleitorais.

O próprio Anderson Torres, descobre-se agora, teria ido à Bahia desenrolar com a PRF os detalhes do plano que acabaria interferindo no fluxo de eleitores daquele estado.

A ideia, ao que tudo indica, era diminuir que votassem Lula na região que deu a ele sonora e definitiva vitória no primeiro turno.

Uma diminuição, mesmo que pequena, já poderia garantir a vitória de Bolsonaro no geral.

Se as acusações se confirmarem, estaremos diante de um dos maiores crimes eleitorais - senão o maior - de nossa pobre história.

Some-se a isso a máquina de fake news disparada contra Lula, as inúmeras acusações de votos comprados (Caco Barcellos fez boa matéria a respeito), o uso da máquina pública de forma grotesca e descarada em nome de votos em Bolsonaro (muito ainda precisa ser apurado) e teremos a estruturação de um cenário desleal, ilegítimo e de guerra contra a vitória de Lula - e a favor de Bolsonaro, portanto.

E, ainda assim, Lula venceu.

Mesmo contra todo esse estado criminoso de coisas, a maior parte dos eleitores disse "não" a Bolsonaro.

Disse não ao genocídio, não ao racismo, não ao machismo, não a LGBTfobia, não ao desmatamento, não a pulsão de morte e destruição.

Disse sim a uma chance de vida, sim ao direito de sonhar e desejar, sim à dignidade das populações originárias.

Perto dos 100 dias, cobram de Lula e sua turma que entregue mais, que entregue tudo, que façam nascer um Brasil que nunca existiu.

Esquecem-se que há pouco mais de três meses estávamos correndo aceleradamente para o abismo.

Foi uma vitória robusta, uma vitória histórica, uma vitória que revela a exata força não apenas de Lula mas também da aliança democrática e da repugnância a Bolsonaro, seus parceiros e seus métodos.

Nesse caso, portanto, ficar repetindo que a vitória de Lula foi apertada é um (muitas vezes conveniente) estreitamento da verdade

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Hora de aposentar a narrativa de que vitória de Lula foi apertada

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05.04.2023

Tenho na cabeça uma frase para a qual adoraria dar o crédito mas vou ficar devendo porque não achei mais a quem creditar: a narrativa está para a verdade assim como uma roupa larga está para o corpo. Pode até se aproximar da pele, mas não conta a história completa.

Desde a vitória de Lula contra Jair Bolsonaro escutamos a narrativa de que foi uma vitória apertada: apenas dois milhões de votos.

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No dia da eleição do segundo turno, lembro de ter tido a sensação, vendo as imagens de pessoas impedidas de votar no nordeste brasileiro, de que aqueles absurdos e estranhíssimos impedimentos do fluxo de eleitores seriam esquecidos rapidamente fosse qual fosse o resultado.

Eu não estava errada.

Até houve, nos dias seguintes ao final da eleição, quem tivesse feito as contas em busca de uma verdade difícil de quantificar a respeito........

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