Cheguei tarde ao bonde daquela que tem sido chamada de a melhor série já produzida.
Eu não diria tanto de Succession, ainda que não haja como escapar de sua excelência.
Colunistas do UOL
Roteiro e atuações são absolutamente memoráveis.
Quando comecei a assistir, o seriado da HBO Max já estava na terceira temporada.
Maratonei e, como milhões de pessoas, fui me apaixonando pelos problemáticos, carentes, mimados, desprezíveis e egoicos protagonistas bilionários.
O retrato de um certo extrato da classe dominante está ali em cores vibrantes.
O que fazem da vida aqueles que retêm esse tipo de riqueza e de poder é jogado na nossa cara com extrema clareza: eles passam seus dias buscando maneiras de ter ainda mais poder.
Não se produz nada, não se pensa em formas de evitar a emergência climática, não se consideram novos rumos, novos modelos, novos métodos. Nada disso está em debate a partir de uma certa escala de riqueza. É a carnificina pelo poder.
Não se trata mais de um jogo por dinheiro, por bens, por voar em jatos particulares que aterrissam em ilhas privadas. É apenas sobre poder.
Sobre como ter mais poder e, com ele, mais súditos.
Os herdeiros são pessoas desprezíveis, inundados de maldade e cinismo, esvaziados de empatia e de humanidade.
Até deixarem de ser, ainda que por trinta segundos.
É através dessa janela que podemos enxergá-los e, por essa fresta, nos apaixonar.
São segundos, mas bastam. É um vestígio de suas vulnerabilidades.
Não podemos tirar dessa equação da paixão o restante do tempo em que os atores, entregues à pequenez do caráter das personagens, atuam artisticamente de forma arrebatadora.
É a arte, afinal, o que também nos torna humanos.
A personagem já não se distingue do ator e da atriz e não temos como dosar o que estamos sentindo.
O que seria dos herdeiros se tivessem sido criados e educados com amor e empatia, e não já treinados a disputar, milímetro a milímetro, mais espaço de poder desde sempre?
O que seria deles se tivessem sido ensinados a cooperar e não a competir? A compartilhar e não a acumular?
Não temos como saber.
O que sabemos é que estão enjaulados num cassino particular que os obriga a seguir jogando até morrerem. São os jogos vorazes da vida real. Um Big Brother derradeiro e macabro.
A dinâmica faz dos herdeiros quatro almas miseráveis, dilaceradas, esfarrapadas, solitárias, infelizes.
Podem comprar tudo, podem ir a qualquer lugar mas são pessoas em ruínas.
E não são assim apesar da riqueza desmedida, mas justamente por causa dela.
Que exista uma sociedade dividida entre ricos, remediados e pobres não é exatamente o problema se todos tiverem acesso ao básico como saúde, educarão, transporte, moradia, cultura, arte e lazer.
Mas uma que se divide entre bilionários e miseráveis passa a ser indefensável.
Succession não é uma obra de ficção, embora seja.
Succession é a vida real.
A vida dos que não mais trafegam por estradas, mas apenas voam pelos ares.
Dos que não veem mais distância entre Nova York e Oslo.
Dos que não sabem o valor das coisas porque a tudo podem comprar.
Dos que não sabem o que é amar pois a eles foi reservado um único tipo de amor, aquele pelo poder.
É a vida dos que não enxergam miséria, pobreza ou escassez porque habitam bolhas de vidro e chegam de helicóptero a seus destinos. Como se emocionar com a dor humana se ela não é mais vista?
Os bilionários ouvem falar que ainda se morre de fome no mundo, mas pensam nisso como nós pensamos em unicórnios brancos sob o arco-íris: será que existem? Talvez sim, talvez não, tanto faz na verdade.
Não há no mundo bilionários e miseráveis, não é essa a relação. Há miseráveis porque há bilionários, é essa a relação.
Mas se os dois universos já não se encontram mais, então fica mais fácil ignorar que a discrepância existe.
Se continuarmos nesse ritmo, em breve serão mundos paralelos dentro de um mesmo planeta que não para de esquentar e de secar.
Succession faz parte de uma série de produtos audiovisuais criados para expor as dimensões de absurdo e de ridículo contidas nesse tipo de riqueza desmedida. White Lotus, O Menu, Triângulo da Tristeza são alguns dos outros.
A boa arte retrata, expõe e critica a vida.