Sou bailarina desde os cinco anos. E, nessa época, havia um bendito Chico entre nós. O Chico nem era do balé clássico, era do sapateado, modalidade que eu também praticava. Dançamos juntos por toda a infância e, obviamente, lembro bem dele: tinha cabelos bem pretos e usava óculos. Não era o melhor da turma mas, nos espetáculos, era sempre colocado no meio da primeira fila, lugar mais disputado entre os bailarinos. Como se fosse um troféu.

Chico de fato era um troféu. Em uma escola de dança com quase quatrocentos alunos, era o único garoto. Lembrei dele essa semana, quando fui assistir ao espetáculo de uma escola de balé. Quarenta anos depois do Chico, me entristeci ao perceber que nada mudou. Ou melhor, até mudou, mas para pior. A escola em questão não tinha um único par de testículos, com exceção de um bailarino adulto, contratado para fazer um pas-de-deux com a bailarina principal.

Como é possível que, em 2023, ainda estejamos privando garotos de uma das atividades mais prazerosas que existem? Os pais irão dizer que os filhos não pedem para fazer balé. É óbvio que não: na linha de montagem do Bebê Brasileiro, meninos já nascem de azul e chuteiras e meninas de rosa e tutu. Os guris que aventam mentalmente a possibilidade de dançar não ousam abrir a boca, pois sabem que será imediatamente silenciada com uma bola de futebol.

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É preciso ser muito Billy Elliot para ter coragem. É preciso ter o talento muito arraigado nas sapatilhas. Só que o mundo não é feito de Billy Elliots. O mundo é feito de crianças de talento mediano, como eu e o Chico. Crianças que não irão seguir carreira profissional mas podem se beneficiar da dança de outras maneiras: como exercício físico, atividade coletiva, forma de desenvolver disciplina ou se expressar artisticamente. Como o escritor Kurt Vonnegut aconselha: "Pratique qualquer arte (...), não importa se mal ou bem, não para conseguir dinheiro ou fama, mas para descobrir o que está dentro de você e fazer a sua alma crescer".

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Acrescento mais um benefício: para ter prazer. Quem dança se sente livre. Transcende. Não por acaso, em todas as épocas, culturas e lugares do mundo, o ser humano sempre dançou. É uma pena que justo a nossa civilização, que se julga tão evoluída, tenha valsado para trás, confinando os homens à área restrita —e muitas vezes subutilizada— da pista de dança.

É mais um daqueles casos em que o machismo se volta contra o macho. Nos últimos anos, as meninas até conseguiram tomar conta dos campos de futebol mas os meninos ainda não conseguem fazer plié nem dar qualquer outro passo. A maioria das escolas de dança também não ajuda, presa a velhos formatos, como papéis distintos para cada gênero e exigência de "corpos raquiticamente perfeitos".

Sábios eram os pais do Chico. Talvez por serem mais velhos, um casal que já passava dos cinquenta anos. Cruzando a linha que separa a metade da vida, já sabiam que não vale a pena se privar ou privar o outro de seus desejos por medo de julgamentos. Nunca vou esquecer a expressão do Chico, o seu rosto de menino liberto: sapateava sorrindo de orelha a orelha.

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Por que só meninas podem dançar?

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17.12.2023

Sou bailarina desde os cinco anos. E, nessa época, havia um bendito Chico entre nós. O Chico nem era do balé clássico, era do sapateado, modalidade que eu também praticava. Dançamos juntos por toda a infância e, obviamente, lembro bem dele: tinha cabelos bem pretos e usava óculos. Não era o melhor da turma mas, nos espetáculos, era sempre colocado no meio da primeira fila, lugar mais disputado entre os bailarinos. Como se fosse um troféu.

Chico de fato era um troféu. Em uma escola de dança com quase quatrocentos alunos, era o único garoto. Lembrei dele essa semana, quando fui assistir ao espetáculo de uma escola de balé. Quarenta anos depois do Chico, me entristeci ao perceber que nada mudou. Ou melhor, até mudou, mas para pior. A escola em questão não tinha um único par de testículos, com exceção de um bailarino adulto, contratado para fazer um pas-de-deux com a bailarina principal.

Como é possível que, em 2023, ainda estejamos privando garotos de uma das atividades mais prazerosas que existem? Os pais irão dizer que os filhos não pedem para fazer balé. É óbvio que não: na linha de montagem do Bebê........

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