Brasil precisa incentivar casa própria para construir futuro de classe média
Quando eu era criança, tinha um amigo sabidamente rico, o que me parecia misterioso, já que ele usava roupinhas como as minhas e morava em um apartamento apertado só com a mãe. Mas um dia fui à casa da sua avó e entendi. "Old money": direitos proprietários sobre centenas de metros quadrados do Jardim América, onde o que está construído importa menos do que o chão.
Igrejas evangélicas têm os CNPJs mais expansivos do Brasil porque não pagam imposto sobre o espaço que ocupam. Na comparação direta, o catolicismo aparece taciturno. Porém, a realidade profunda é que não está nem sequer perto de ser ameaçado pela concorrência. A razão é simples: trata-se do maior proprietário não governamental de terra do mundo, com 177 milhões de acres.
Enquanto as novas igrejas precisam coletar o dízimo ininterruptamente para se manterem relevantes, a igreja católica apostólica romana tem um país próprio, onde se formam filas imensas de turistas pagantes durante todos os dias do ano para pisar em partes do seu chão.
Todos os historiadores sérios concordam que o regime escravocrata possui papel central na desigualdade atual. Como, se já se passaram 136 anos? As razões são multifacetadas, mas um fator é central: os libertos não possuíam nem sequer um rancho para dele tirarem o sustento. A solução era seguir arando o chão alheio, o que em grande medida trouxe-nos até aqui.
No ano em que se proibia o tráfico negreiro (1850), dom Pedro 2º assinou a Lei de Terras, determinando que apenas quem tivesse direitos notarizados (registrados em cartório) seria legítimo proprietário. O que estava em jogo eram as chamadas terras devolutas ou "sem dono", as quais hoje consideraríamos como do Estado.
A lei não foi compreendida e aplicada de uma só vez. Pelo contrário, ela foi pegando conforme os proprietários descobriam que podiam declarar ao tabelião extensões muito maiores do que as originalmente determinadas para as suas fazendas. Foi assim que surgiram alguns dos primeiros unicórnios brasileiros, empresas de crescimento rápido, típicas dos bilionários do Vale do Silício.
As terras devolutas evidentemente serviam à subsistência de um monte de gente alheia à novidade. A falta de notarização, como em um daqueles truques de mágica que podem ser feitos com uma caneta ordinária, criou uma legião de miseráveis do "progresso" fundiário.
O processo não foi tão distinto daquele que marcou o fim do período medieval, o cercamento das terras comunais, levando ao surgimento da força de trabalho característica da modernidade.
O fenômeno impulsionou o crescimento de muitos quilombos, que nos livros escolares se mantinham apenas pelo desejo de liberdade de bravos escravizados. Ledo engano. Muitos quilombos foram fomentados pela carência de direitos proprietários entre os libertos, dado que isso envolvia uma burocracia e um custo que lhes eram excedentes.
A conclusão é inequívoca: no Brasil do passado, como em outras partes, direitos proprietários determinavam quem você é. Pois a grande verdade é que no atual seguem fazendo o mesmo.
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