Não aconteceu nada, alegadamente
Os mediadores da realidade. O mundo real é cada vez maior. A percepção do que acontece no mundo não é directa a não ser para uma pequeníssima realidade doméstica, tudo o mais é servido pelos agentes de notícias. A “realidade” assim servida é uma interpretação do que aconteceu, depende tanto dos factos como das opções de quem os descreve. Pode ter omissões selectivas, pode ter acrescentos interpretativos, não estar contextualizada. E, em praticamente todos os casos, é inverificável.
Este é um fenómeno novo, determinado pela expansão virtualmente ilimitada do espaço onde pode ser gerada informação e determinando, ele próprio, a progressiva assimilação das noções de informação e conhecimento – informação e conhecimento que estiveram tendencialmente dissociados durante quase toda a história das culturas. Numa sociedade rural ou isolada geograficamente a informação era apenas acessível numa escala próxima pela observação directa, por informação de uma testemunha de confiança, ou transmitida por ensinamento no grupo/ família. Sociedades como essas eram a regra até há 2 séculos, alimentadas por uma cultura muito concêntrica e com doses suficientes de xenofobia. O conhecimento, para a imensa maioria desses indivíduos, era limitado pela sua base observacional ou consuetudinária e tinha um carácter utilitário. Um conhecimento diferente, de temas mais alargados, sem aplicação prática imediata e forte componente especulativa, fixou-se como domínio de uma minoria de amantes de conhecimento, frequentemente marginais ou moderadamente doidos. Essa minoria de praticantes de um conhecimento com utilidade diferida mantém-se, alargou-se, sendo hoje uma vasta classe de cientistas, estudiosos e alguns filósofos que, em grande medida, incorrem na mesma marginalidade que no seu tempo tiveram Newton ou Kant.
Porém, a decisiva diferença é que a maioria dos indivíduos nas sociedades modernas já não está limitado ao conhecimento prático dos seus bisavós – um ofício e habilidades sucintas para uso doméstico. A maioria das pessoas tem acesso a uma informação global que não é para uso diário, que é inútil em termos de sobrevivência vital, mas que pode ser organizada em estruturas cognitivas que variam entre a opinião e a convicção motivadora de comportamentos. É essa imensa maioria de indivíduos, cidadãos, que os jornalistas alimentam com as suas notícias e análises. É esse carácter formativo, e não estritamente informativo, que cria a enorme responsabilidade hoje colocada em cima dos jornalistas.
A realidade e os seus derivados. Nas últimas semanas aconteceram inúmeras coisas ao mesmo tempo – muitas ainda estão a acontecer e algumas vão manter-se activas nos próximos anos.
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Os incêndios na Califórnia, a transição do poder na América para o Senhor Trump, Moçambique em anarquia, a radicalização da conversa entre Rússia e Europa, o acordo de paz em Gaza, a escravização infantil na Inglaterra trabalhista, a guerrilha no Martim Moniz. Todos estes factos seriam notáveis o suficiente. Porém, a sua exposição nos media acompanhou-se de um reavivar das perplexidades sobre o modo como essa exposição foi feita e, principalmente, como o modo de expor um facto pode ser pretexto para veicular realidades não factuais, ideias, desejos e, no limite, mentiras.
Os incêndios em Los Angeles ou, como alternativa, “em Hollywood”, devastaram uma terra onde vivem artistas riquíssimos nas suas enormes mansões – por isso “Los Angeles” ou “Hollywood” têm uma eloquência sociológica e plástica maior e são designações preferíveis a “Califórnia” que é apenas uma terra poeirenta de cow-boys. Pela sua providencial grandeza os incêndios atiçaram os anúncios entusiasmados sobre o holocausto climático e os sermões sobre o pecaminoso modo de vida americano. A “ebulição global” foi responsabilizada pela enorme fogueira e pelo modo incontrolável como ela se alargou, ou seja, foi vendida mais barata a teoria das mudanças climáticas e ocultou-se a situação desfalcada dos meios de combate ao incêndio.
As mudanças no clima são evidentes – para quem manipula estatísticas de alguma dezenas de anos, para quem quer planear as férias na Quarteira, ou pôr a secar em segurança uma máquina de roupa. Mas deviam merecer na sua avaliação maior honestidade intelectual e inteligência. A poderosa terra está sujeita a mudanças climáticas cíclicas separadas por séculos, com causas conhecidas e desconhecidas, e durante as quais ocorrem à escala dos anos flutuações do clima que tendem a antecipar a mudança climática global. A ciência, a que olha para o clima sem preconceitos, não tem esse assunto elucidado. A única realidade que parece elucidada é a cruzada de uma ciência protagonista, de um secretário geral não medicado e de uma ideologia que odeia os fundamentos materiais do mundo.
Sobre a outra questão relevante, os meios de combate aos incêndios em Los Angeles, a discussão ficou e vai permanecer surda. O mundo aguardará em vão que duas mulheres, uma negra acusada de incompetência na dotação de verbas e “homens”, mas........
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