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A Guerra Perdida de Winston Churchill

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26.11.2024

Vladimir Shklyarov era primeiro bailarino de uma prestigiada companhia de bailado de São Petersburgo. Era um ilustríssimo bailarino, experiente e admirado. Apesar de uma longa experiência de 40 anos a voar em palco, adequada como poucas ao treino do equilíbrio, Vladimir desequilibrou-se. Tendo sido de uma janela de 5.º andar, morreu, e as autoridades russas não tiveram dúvidas de ter sido um acidente.

As autoridades russas têm uma soberba experiência em quedas de janelas. A sua capacidade para distinguir um acidente terrível de um empurrão maldoso tem sido exaustivamente testada nos últimos anos. A sua proficiência no campo das quedas de janela envergonha todas as polícias do mundo ocidental que se atormentam e perdem tempo em casos semelhantes. A profusão de inquéritos em que se esgotam, só porque um estudante alcoolizado caiu normalmente de uma varanda em Ibiza, é perdulária, expõe todas as indecisões e fragilidades dos regimes capitalistas. Os acidentes não são acidentais na Rússia, fazem sentido segundo as leis do materialismo histórico — leis boas, que não podem ser detidas, e devem ser motivo de reflexão para quem pensa que na Rússia não há lei. A coincidência de acidentes como o de Vladimir acontecerem sempre com cidadãos avessos ao regime russo por qualquer motivo, bom ou mau, tem todas as características de uma intervenção superior – com origem no céu ortodoxo ou num dos andares mais altos de Lubyanka – e a participação da lei da gravidade em todas as defenestrações acidentais corrobora, sem espinhas, o império das leis no país do Senhor Putin.

O Senhor Putin esforça-se por impor a sua versão geopolítica da Ucrânia desde 1991, esse ano fatídico para o Senhor Putin em que o império soviético, ex-czarista, sofreu a fractura cominutiva de que nunca se curou. Nesse ano, a Ucrânia recuperou a sua independência, tal como outras repúblicas soviéticas. O seu território, palco de partilhas e submissões ao longo de milénios, experimentara uma primeira e fugaz independência em 1917, aquando da reconfiguração de poderes permitida pelo caos da revolução russa. A constituição da União Soviética em 1922 absorveria a Ucrânia durante os 70 anos seguintes – até à sua separação. O Senhor Putin comporta-se como um ex-marido ciumento que ainda hoje não aceita que a sua Ucrânia tenha saído de casa para viver uma relação anti-natural com a Europa.

A Ucrânia encontra-se muito para cá dos Urais – a cadeia de montanhas que no interior da Rússia, e muito para leste de Moscovo, São Petersburgo ou Novgorod, já foi a cortina de pedra que sinalizava o início da Ásia. Hoje, não é claro onde termina a Europa, e se a Europa é um continente ou um acervo cultural adicionado de opções políticas. Para o Senhor Putin essa subtileza não faz sentido, tal como para um tanque de guerra é indiferente se avança por terra lavrada ou numa autoestrada com seis faixas e estações de serviço.

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A vocação expansionista da Rússia não é recente, tornou-se apenas mais temível após o apetrechamento militar e ideológico proporcionado pela revolução comunista. No seu tempo, Churchill entendeu isso e nas suas recomendações do post-guerra quis proteger a identidade dos países livres, fosse qual fosse a sua posição no mapa do mundo. A sua cortina de ferro ficava muito mais para cá dos Urais, no coração da Europa, e sinalizava a ambição soviética sobre o continente. Em 1945, a ideologia e a paranóia estaliniana da segurança eram determinantes na pretensão soviética de se expandir. Churchill tinha-o compreendido durante o período da guerra, levou essa convicção para Yalta e Potsdam, mas ninguém o ouviu. A Europa e os Estados Unidos adoptaram a ideia adolescente de que a União Soviética era fixe, respeitável, e que algumas travessuras — milhões de mortos pela tortura ou pela fome — estavam desculpabilizadas por outros tantos milhões de mortos que Estaline empilhou friamente às portas de Volvogrado (já chamada Estalinegrado desde 1925 por determinação implícita do próprio Estaline) e porque os vencedores das guerras são sempre boa gente e dignos de muita consideração.

As ambições do Senhor Putin têm motivações diferentes das de Estaline. São uma ameaça idêntica sobre o mundo livre, mas estão significativamente despidas de ideologia.

A reestruturação de fronteiras depois da II Guerra Mundial anima o sonho imperial do Senhor Putin — é inspiradora, depois de então ter sido permitido à União Soviética abocanhar a Finlândia, os países bálticos, Checoslováquia, Polónia e Alemanha. Se isso aconteceu uma vez em 1945, se aconteceu uma segunda vez em 2014 com a anexação da Crimeia, voltará a ser possível mais uma e outra vez. O Senhor Putin por esse lado está confiante, a política do facto consumado e do medo resultarão de novo.

O Senhor Putin não se conforma com o desmembramento da grande União Soviética, que será sempre a Grande Rússia – sem os sovietes. Nunca perdoará a Gorbachov, o filho querido do ocidente e do capitalismo, que acabou com toda a grandeza da mãe Rússia. Nunca perdoará a si próprio, que nesse período até 1991, foi coronel do KGB e não foi capaz de travar o apóstata. Há na ambição do Senhor Putin uma pretensão correctiva e penitencial. Quer ver-se a si próprio como o restaurador da Rússia, enorme e ameaçadora, e não se lembrar de que foi o polícia que falhou.

Para o senhor Putin a Ucrânia é o ponto de partida para a sua corrida contra o tempo. Precisa dela pela sua localização estratégica e pelos seus recursos. A Ucrânia é uma jóia perdida e em mãos multiplamente abomináveis: gente de sangue........

© Observador


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