O acordar da bela adormecida ou a História continua |
Muito do que hoje observamos no plano mundial parece-me ser um refluxo do optimismo idealista – e, por vezes, de certa arrogância – com que o Ocidente abordou o fim da Guerra Fria. Se bem se recordam, a Guerra Fria foi vencida pelo Ocidente através da economia e do soft power dos seus valores e cultura, apesar do impasse militar.
Essa vitória decisiva, de certo modo, culminou a sequência das guerras mundiais que assolou o século XX, com a clara afirmação dos valores do que hoje chamamos Ocidente, nomeadamente liberdade e democracia. E com essa vitória instalou-se uma mitologia de “fim da História” e paz perpétua, segundo a qual a democracia liberal e o mercado seriam a estação final do percurso político da Humanidade, cuja universalização a conduziria irrestritamente no caminho da afluência generalizada, num diálogo amistoso entre todos.
À sombra desta mitologia política, o funcionamento da economia mundial passou a ser orientado pelo paradigma da eficiência económica, isto é, pela ambição quase exclusiva de fazer mais com menos. Empresas e governos passaram a medir o sucesso pela capacidade de reduzir custos, eliminar redundâncias e maximizar a produtividade das cadeias de valor. A tecnologia, a globalização e as finanças criaram as condições para que essa lógica se tornasse universal. A produção dispersou-se pelo planeta, em cadeias de valor cada vez mais complexas e interdependentes. Outsourcing e off-shore tornaram-se buzzwords inúmeras vezes repetidas neste processo.
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Porto de Qingdao, na China: a produção dispersou-se pelo planeta, em cadeias de valor cada vez mais complexas e interdependentes
As economias avançadas transferiram grande parte da sua indústria para países com salários mais baixos, sobretudo na Ásia, libertando recursos para atividades de maior valor acrescentado – investigação, design, finanças, serviços. À primeira vista, todos ganharam. Nos países emergentes, centenas de milhões de pessoas saíram da pobreza, num dos mais extraordinários processos de melhoria de vida da história humana. Nos países ricos, os consumidores beneficiaram de preços mais baixos e de uma abundância de bens impensável uma geração antes, e as empresas, sobretudo as maiores, tornaram-se mais rentáveis. O mundo parecia tornar-se, simultaneamente, mais eficiente e mais justo.
Não foi bem assim. E por isso vivemos o refluxo de um paradigma – o da eficiência despolitizada – e o regresso de outro – o da eficácia estratégica – com profundas consequências económicas, geopolíticas e democráticas.
A pandemia, primeiro, e a re-emergência das tensões geopolíticas, depois, acabaram por expor as vulnerabilidades do paradigma da eficiência. Em tempos de bonança, quando tudo rola sobre esferas, a eficiência promove melhores resultados económicos. Mas se as esferas gripam, ou entornos tempestuosos se sobrepõem à bonança, percebe-se que há um outro paradigma que se torna crucial: o da eficácia. Mais do que encontrar o caminho mais rápido e barato para levar a carta a Garcia, descobre-se que o essencial é garantir que a carta chega mesmo a Garcia. E que, por vezes, isso só se consegue por outros caminhos.
E então percebeu-se o que, aliás, já se sabia antes do mito do “fim da história”:
O encurtamento das cadeias de abastecimento e a criação de redundâncias passou então para o centro das estratégias empresariais e estatais, visando prevenir disrupções críticas ou, mesmo, a insustentabilidade existencial.
Mas não foi apenas na esfera económica que o paradigma da eficiência revelou vulnerabilidades e o paradigma da eficácia teve de ser recuperado.
A re-emergência das tensões geopolíticas também veio destapar a ilusão da paz perpétua associada ao mito do fim da História. Afinal, a notícia do “fim da História” e da paz universal – tal como a da morte de Mark Twain – revelou-se manifestamente exagerada.
A conflitualidade – antagónica ou competitiva – tem sido a regra dominante no desenho da História longa. Atrever-me-ia mesmo a dizer – como vários autores têm assinalado – que essa conflitualidade, apesar da destruição que tantas vezes gerou, foi também um dos motores mais activos do progresso tecnológico e económico.
Como sustenta a tese de vários autores, segundo a qual o Ocidente liderou o mundo durante os séculos da modernidade e contemporaneidade, nas vertentes tecnológica, económica e militar, por a sua organização política assentar numa multitude de Estados em permanente competição pela ascendência ou sobrevivência. Enquanto a governação centralizada do imenso território da China, por exemplo, a privou de incentivos comparáveis para emular o sucesso ocidental.
A fragmentação europeia – tantas vezes fonte de guerras e sofrimento – acabou por ser, paradoxalmente, um laboratório de inovação e de emulação criativa, onde o fracasso de uns se convertia em........