A crise das democracias e a ascensão dos populismos

(Nota Prévia: Há duas semanas, partilhei aqui a primeira parte de uma profunda e demorada reflexão que tenho vindo a fazer para tentar perceber o curso do mundo actual. Essa parte incidia sobre o contexto geopolítico e geoeconómico. A segunda parte, que completa essa reflexão e que hoje partilho, incide mais especificamente sobre as condições de funcionamento dos sistemas políticos ocidentais).

O Ocidente moderno parece viver numa tensão crescente: uma civilização materialmente afluente, mas parecendo moralmente cansada. Depois de quase um século de progresso material historicamente inaudito – que permitiu um crescimento exponencial da população, ao mesmo tempo que assegurava uma substancial e continuada melhoria das suas condições de vida, expandindo prosperidade, e que consolidou amplas liberdades individuais e sólidos sistemas de segurança colectiva –, esse universo dá hoje sinais de exaustão anímica.

As democracias liberais, que constituíram o esteio político desse estrondoso progresso social, apresentam sinais de desgaste, com o gradual esvaziamento do seu centro vital e agregador e a emergência, nas suas margens, de radicalismos extremistas e forças desagregadoras que corroem as instituições da ordem social.

O acordar da bela adormecida ou a História continua

Não sendo esse desgaste facilmente imputável à perda de capacidades materiais – uma vez que essas sociedades permanecem, no seu conjunto, nos píncaros históricos de bem-estar – fica-se mais facilmente inclinado a procurar as razões de insatisfação na frustração de expectativas. Expectativas que, por um lado, terão sido levadas longe demais, face à natural impossibilidade de se manter a cadência de novas melhorias; e que, por outro, se terão progressivamente desalinhado, em direcção e em ritmo, entre os vários grupos sociais que outrora caminhavam com o passo mais acertado.

Para este desalinhamento e fragmentação social, muito terá contribuído o enfraquecimento do elevador social que, no período áureo do pós-Guerra, desempenhou um papel central na inclusão e na “miscigenação” de classes. Durante décadas, a mobilidade ascendente permitiu renovar elites, aproximar mundos sociais distintos e sustentar a ideia de pertença a um destino comum. Com o seu progressivo bloqueio, porém, a sociedade foi-se tornando mais rígida e fragmentada, com grupos cada vez mais compartimentados nas suas condições de origem. Esta estagnação alimenta frustrações profundas, cristaliza ressentimentos e enfraquece a coesão que torna possível “acertar o passo” na comunidade.

Na base das democracias liberais modernas, para além dos processos políticos que formalizam o seu funcionamento e a legitimação dos órgãos de poder, encontra-se um contrato social tácito entre as elites e aquilo a que se poderia chamar as “classes populares”. Nos termos desse contrato, as elites governam, mas devem atender aos interesses e necessidades das classes populares para manter a legitimidade e evitar a rebelião.

Embora a teorização do contrato social seja muitas vezes enquadrada, em termos filosóficos, por figuras como Hobbes, Locke ou Rousseau — e sob uma abstracção social mais igualitária –, uma leitura mais realista e histórica pode ser rastreada até aos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio de Maquiavel. Aí, o autor identifica a tensão fundamental entre os grandi – os que têm ambição e meios para governar – e os popolari, o povo comum, que procura viver a sua vida em paz, evitando ser dominado. Maquiavel via essa tensão, não como um defeito, mas como a própria condição da liberdade numa república bem ordenada, onde ambos os grupos podem aprender a coexistir e prosperar em circunstâncias institucionais adequadas: os primeiros gerindo o Estado, mas sob o consentimento, tácito ou expresso, dos segundos. Em termos modernos, isto transformou-se num sistema no qual as elites governam e moldam as políticas, enquanto as classes populares conferem legitimidade em troca de segurança material, representação política e um sentido de inclusão cultural.

Maquiavel identificou a tensão entre os grandi – os que têm ambição e meios para governar – e os popolari, o povo comum, que procura viver a sua vida em paz, e via-a não como um defeito mas como condição da liberdade

Durante grande parte do século XX,........

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