Reparações coloniais: gaiolas em busca de pássaros

Num dos aforismos de Zürau, Franz Kafka anotou: “Uma gaiola partiu em busca de um pássaro”. Uma metáfora insólita, mas particularmente adequada ao movimento das teorias “pós-coloniais” e “descoloniais”, fabricadas nas estufas intelectuais do Norte e, em seguida, exportadas para as plantações intelectuais do Sul: estruturas teóricas vazias, presas a uma nostalgia de missão redentora, vagueando pelo mundo à procura de um sujeito colectivo, preferencialmente exótico, capaz de lhes restituir o sentido. Como gaiolas itinerantes, órfãs de pássaro, estas teorias missionárias precisam desesperadamente de uma dor alheia, real ou fictícia, da qual possam extrair o preenchimento do seu vazio.

É neste cenário kafkiano, nascido nas academias e meios culturais do mundo ocidental, que devem ser inscritas as narrativas acerca de uma alegada responsabilidade de certos países europeus, incluindo Portugal, por crimes do período colonial – da exploração humana à apropriação de recursos –, exigindo-lhes, em consequência, reparações financeiras e devolução de bens aos Estados resultantes do antigo império colonial.

Estas teses são fabricadas e alimentadas, paradoxalmente, por europeus brancos, ou pelos seus descendentes, incluindo governantes fracos que, pela sua fraqueza, capitulam perante as exigências delirantes de um politicamente correcto que não é senão a expressão de um moralismo pós-moderno e niilista que converte o passado em culpa, o presente em denúncia e o futuro em contrição.

Em Portugal, de forma particularmente chocante, foi o próprio Presidente da República quem resolveu emprestar prestígio ao delírio, defendendo que o país deve assumir as suas responsabilidades pelos crimes imputados à era colonial e avançar com reparações às antigas colónias.

Em 2023, durante a cerimónia de boas-vindas ao Presidente do Brasil, Lula da Silva, Marcelo Rebelo de Sousa falou num pedido de desculpa pela exploração colonial e pela escravatura, apelando à “assunção plena de responsabilidades”. No ano seguinte, durante um jantar com correspondentes estrangeiros, o chefe de Estado português seria ainda mais explícito, afirmando que Portugal tem de “pagar os custos” dos seus erros históricos, incluindo a punição de responsáveis nunca julgados e a restituição de bens saqueados. Para o Presidente da República, o ritual penitencial não se satisfaz com um pedido de desculpas: no ventre sacrificial e insaciável do Moloch da culpa histórica, é preciso depositar também o óbolo das reparações financeiras e a oferenda da devolução patrimonial.

Mais recentemente, durante a cerimónia dos 50 anos da Independência de Angola, o Presidente português ouviu, em silêncio, referências ao colonialismo português como um período de “opressão e escravização”, sendo mesmo equiparado ao regime do apartheid na África do Sul. Esperar-se-ia, no mínimo, que Marcelo Rebelo de Sousa tivesse defendido a história de Portugal e a honra do nosso país numa declaração – das muitas que faz todos os dias – logo após o final da cerimónia oficial.

Noutro plano, é também no contexto kafkiano que devem ser inscritas as recentes posições da jornalista brasileira Eliane Brum, que, desenterrando os velhos mantras da culpa colectiva, decidiu, no âmbito de uma exposição na Gulbenkian, atribuir aos portugueses a totalidade das mazelas da colonização – da apropriação de terras indígenas à escravatura. Nas suas palavras: “O que os homens portugueses começaram a fazer aqui tão logo colocaram suas botas e seus corpos infetados no ventre de areia das praias, seus pénis sifilíticos nas vaginas das mulheres originárias, foi construir ruínas”. Importa sublinhar que Eliane Brum, defensora de uma pureza originária, nem sequer é, à luz da sua própria lógica genealógica, nativa: descende de friulanos do norte da Itália.

Estas posições despudoradas, tanto as do ainda Presidente da República de Portugal como as da jornalista brasileira, não surgem do nada; antes se inscrevem numa atmosfera intelectual em que vários países europeus, Portugal entre eles, se tornaram alvos preferenciais de uma ofensiva político-ideológica da esquerda, com a cumplicidade pouco corajosa de uma parte da direita dita........

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