Portugal, o Holandês Voador das Nações

O prazo terminou, e mais sete anos passaram.
Cheio de tédio, o mar lança-me em terra.
Ah, orgulhoso oceano!
Dentro em pouco hás-de levar-me de novo!
O teu orgulho pode ser vencido, mas o meu tormento é eterno.
A salvação que procuro em terra,
Nunca a hei-de encontrar!
A vós, vagas do mar do mundo,
Permanecerei fiel, até que a vossa última onda
Se quebre e a vossa última gota seque!

—…Richard Wagner, Der fliegende Holländer

“ie Frist ist um…” – o prazo terminou, e o capitão ergue-se do abismo para mais um ciclo da sua condenação: o Sísifo dos mares. Sete anos passaram, e o mar permanece o mesmo: vasto, impassível, indomável, indiferente às súplicas do homem. Nesse grito inaugural, Wagner oferece-nos uma poderosa parábola da condição moderna – e, talvez, na figura do Holandês, do homem português: um ser que não pode regressar nem cessar o movimento, condenado a procurar sentido na própria errância.

Como o Holandês, também Portugal parece destinado a recomeçar, a transformar o limite em travessia, a maldição em vocação. O mar, que foi glória e exílio, é o espelho dessa dualidade: promessa de infinito e lembrança de impotência. Entre a ânsia de redenção e o cansaço da viagem, o país reencontra a sua velha tarefa: a de dar alma ao realismo e realismo à alma. Porque, no fundo, o verdadeiro inferno das nações não é perderem o rumo: é esquecerem aquilo que um dia as lançou ao mar.

Assim começa a nossa travessia. A cortina ergue-se com o rumor da tormenta. Entre a terra e o mar, Portugal constitui-se como entidade liminar, velha alma suspensa entre dois elementos que se atraem e se repelem. Desde a fundação, move-se nesse ponto de intersecção entre a Europa, porto geográfico de origem e promessa de segurança, lei e prosperidade, e o Oceano Atlântico, espaço de prolongamento estratégico e sonho de liberdade, risco e horizonte.

Portugal é o Holandês Voador das nações: um país de vocação anfíbia, que oscila entre a necessidade de estrutura continental e o impulso de expansão oceânica, inserido num sistema internacional constitutivamente anárquico – pois, como observa Kenneth Waltz, a anarquia não significa desordem, mas constitui um princípio ordenador –, onde o poder é a medida da segurança e a sobrevivência o primeiro dever. É esta a lição do Realismo de Hans Morgenthau: a política entre as nações obedece a leis objectivas, enraizadas na própria natureza humana, e o Estado, dotado de uma dignidade própria, deve orientar-se pelo interesse nacional como princípio supremo: the moral dignity of the national interest.

Como Realistas (Realistas Clássicos e Neorrealistas), temos como bússola para a viagem justamente a transição de poder em curso no sistema internacional e o refluxo da ordem liberal internacional.

Nascida da vitória ocidental em 1945 e reafirmada, em plenitude, em 1991, a ordem liberal internacional acreditou poder converter a anarquia em governança e o poder em norma. Mas a globalização que unificou mercados também dissolveu fronteiras, e a promessa de interdependência transformou-se em instrumento de coação. O comércio, outrora sinónimo de paz (como celebrava Voltaire nas suas Lettres philosophiques, ao ver na Bolsa de Londres o templo da tolerância e da razão), tornou-se muitas vezes arte de domínio; a informação, novo teatro de guerra. A “paz liberal” não colapsou de repente: foi-se evaporando lentamente na sobre-expansão das suas próprias certezas.

Durante três décadas, o Ocidente viveu num parêntesis histórico – a célebre holiday from history – que confundiu a excepção com a regra. A vitória na Guerra Fria e a dissolução da URSS criaram a ilusão de que a História encontrara finalmente porto seguro, e de que a anarquia internacional podia ser domesticada pela norma liberal. Mas a Unipolaridade americana (sustentada por uma supremacia económica, tecnológica e militar sem precedentes) foi menos uma condição estrutural do sistema do que uma anomalia providencial, breve como uma maré alta. A normalidade histórica, ensina-nos o Realismo, não é harmonia, mas fricção; não é consenso, mas competição e mesmo guerra. O estado natural do mundo é o conflito regulado hobbesiano, não a paz perpétua kantiana. O regresso da rivalidade entre grandes potências não é, pois, uma recaída, mas um reencontro: um reencontro da política internacional com a sua própria natureza.

No centro da grande transição em curso no sistema internacional ergue-se, como uma muralha que se vê da lua, a China, cuja ascensão marca a viragem de época. A sua importância económica, tecnológica e geopolítica redefine o equilíbrio global e impõe, a todos os que desejam manter autonomia de acção, um realismo estratégico. O seu modelo híbrido (capitalismo de Estado, tecnologia controlada, nacionalismo histórico) desafia a ideia de convergência democrática. Com a Nova Rota da Seda, Pequim tece uma rede planetária de dependências: portos, estradas, satélites, crédito. Não pretende apenas prosperar, mas moldar o ambiente onde o poder se exerce. O “Império do Meio” regressa à história como pólo civilizacional alternativo, combinando pragmatismo estratégico com memória imperial.

Os Estados Unidos, por seu lado, são ainda largamente a maior potência mundial, mas enfrentam as agruras da fadiga hegemónica. A liderança que outrora unificou o Ocidente vacila entre o dever moral e o cálculo interno. O pivot para o Indo-Pacífico, a retirada afegã, a hesitação europeia: cada gesto denuncia a passagem de uma grande estratégia internacionalista baseada em confiança para um retraimento estratégico (não “isolacionismo”) prudente. Ainda assim, a América permanece o garante último da segurança ocidental, a potência indispensável num mundo que já não aceita potências únicas.

A Rússia, por seu lado, reaparece como potência revisionista que desafia fronteiras e códigos do pós-guerra. A invasão da Ucrânia não é um acidente, mas um sintoma: o regresso da power politics (a política do poder puro e duro) ao coração da Europa. Moscovo entende o poder como teatro e sacrifício, e joga a estabilidade regional como moeda de troca para reconquistar a “zona de influência” e o estatuto global que sempre considerou seu por direito. A guerra tornou visível o que muitos preferiram ignorar: que o século XXI não aboliu a tragédia, apenas a deslocou. E que o maior desafio securitário da Europa desde o fim da Guerra Fria é precisamente o modo como enfrentará esta ameaça russa. Do seu discernimento e da sua coesão dependerá não apenas a sorte da Ucrânia, mas o próprio futuro do projecto europeu.

A Europa, que não podia, inevitavelmente, deixar de ser afectada por esta erosão sistémica, tem-se revelado, no entanto, impreparada para lidar com os desafios estratégicos do novo tempo. Atravessa uma profunda crise de legitimidade e de identidade política. As suas lideranças, frequentemente desfasadas da realidade concreta das populações que representam, vivem encerradas em bolhas tecnocráticas, distantes das preocupações quotidianas dos cidadãos. Ignoraram, ao longo das últimas décadas, os problemas reais que afectam as suas comunidades: a estagnação económica, o declínio demográfico, a imigração descontrolada, a desindustrialização, a perda de coesão social e cultural e, sobretudo, o desafio representado pela aliança entre formas radicais de esquerda e um certo........

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