O milagre da terra-de-ninguém

Dizem ser de um sapateiro pobre a culpa de acendermos velas no Natal. Vivia junto à estrada, numa pequena aldeia austríaca, longe do bulício da cidade. Para iluminar quem aí passava, peregrinos e errantes, deixava uma bem visível na janela solitária que lhe trazia as manhãs frias e por onde contemplava o único pedaço de mundo que julgava seu. Quando o exército roubou os filhos ao povoado, deixando as ruas vazias e tristes como estações sem chegadas nem destinos, manteve o ritual. Antes da consoada, inspirados por tão singular habitante, os que não haviam partido em missão imitaram o gesto. No casario, como no céu, luzes infinitas, estrelas rutilantes. À meia-noite, os sinos dobraram sem parar. Depressa se espalhou a notícia. A guerra terminara.

Nem sempre acreditamos em lendas. Na maioria, pelo menos. Nem por isso estamos dispostos a esquecê-las. Tão-pouco a renegá-las. Honramos a etimologia. O termo vem do latim medieval legenda, que significa «o que deve ser lido». Nele se destaca a raiz proto-indo-europeia *leg-, que acolhe o sentido de «compilar», «reunir». Encontramo-la em vocábulos afins, como «legado» e «legião». Sabemos, portanto, serem as narrativas longevas pórticos amplos do passado, pegadas que o tempo não levou. Em cada uma se unem realidade e utopia, como se de ferro e carbono se tratasse. E logo nasce matéria sólida, imune à erosão. Ouvimo-las dos nossos pais, que as roubaram aos nossos avós, que as receberam dos antepassados um dia. Todos as herdámos. Todos as entregaremos. Não somos donos de nada. Apenas sentimos a vida nas mãos.

De tão extraordinárias e improváveis, algumas obrigam-nos a esquadrinhar cada frase, cada pausa, cada sinal, como se........

© Observador