Ginzburg e as espigas dos gansos
Respigadoras eram aquelas humildes mulheres que outrora recolhiam as espigas que as ceifeiras deixavam para trás nos campos. Há alguns anos, Agnès Varda realizou um filme sobre elas e sobre todos aqueles que teimam em recolher aquilo que outros atiram fora ou não querem guardar por considerarem sem préstimo: tubérculos, maçãs, cachos de uvas e outros alimentos, brinquedos, móveis, objetos sem uso, coisas sem dono…
Varda considerava-se uma dessas recolectoras do insignificante. Era essa a verdadeira razão do seu ofício: ir apanhando da corrente da vida aqueles restos que ninguém quer e que misteriosamente preservam o poder de iluminar por um instante a nossa passagem por este mundo.
Pensei nesse filme inclassificável ao tropeçar na recentíssima edição dos ensaios de Natalia Ginzburg (Nunca me Perguntarás, Relógio d’Água, 2025) uma das grandes escritoras italianas da segunda metade do século passado. Originária de uma família de intelectuais judeus – o seu primeiro marido foi executado pelos fascistas em 1944 – veio depois a trabalhar na Einaudi, com Pavese e Calvino, e é autora de várias peças de teatro, de um livro inesquecível sobre a sua infância, e de romances profundamente melancólicos, como Todos os nossos Ontens, As Palavras da Noite e Caro Michele. Nas suas obras, costuma retratar a classe média italiana do pós-guerra, particularmente as suas mulheres, com um olhar desencantado e cheio de melancolia. Mas, à maneira de Tchekhov, ao falar-nos da desordem do mundo fala também daquela estranha luz que tantas vezes descobrimos nele.
Os seus ensaios constituem sempre uma elegia em prosa à miuçalha, àquela espiga que, ficando para trás, se tornou inesquecível. Não apenas por serem maravilhosamente escritos, mas também por aquela maneira tão sua de se nos dirigir sem se dar importância, sem presumir........
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