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O holograma da corrupção

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17.03.2025

Em Portugal a corrupção transformou-se num fantasma, numa fantasmagoria, em que os nossos mais profundos desejos e medos se juntam num holograma omnipresente. Chamo holograma (projecções e percepções) por ser um problema endémico em que os meios modernos racionais, burocráticos, jurídicos e políticos falharam, tendo-se tornado do domínio do que antes dava pelo nome de ‘sagrado’ (aparentemente para além para possibilidades de gestão ordinária dos seres humanos). A violência da corrupção, irresolúvel por enredos modernos, veio activar enredos antigos: especificamente o da ‘tragédia’ (à letra, o caminho do bode) da qual Luís Montenegro é a mais recente personagem. Seguindo René Girard**, este enredo, tão antigo quanto a história da humanidade, parte de um medo e uma violência difusos que só são possíveis de aplacar em função de um sacrifício para o qual é necessário identificar/criar um ‘bode expiatório’, tendo a finalidade de uma purga que apazigue a sociedade durante algum tempo.

1. O Sacrifício

Estamos perante o segundo primeiro ministro em Portugal que cai em função da fantasmagoria da corrupção. O facto de termos um antigo primeiro ministro que esteve em prisão preventiva há já 10 anos (!), que está acusado por corrupção, que foi julgado em praça pública, que viu muitos dos crimes de que era acusado caírem, mas…que nunca chegou a julgamento, faz exactamente da corrupção mais um conjunto de projecções e percepções do que de factos escrutináveis e verificáveis por uma qualquer entidade competente para tal. Ou seja, a corrupção constituiu-se, efetivamente, como uma fantasmagoria. O facto de se falar muito de corrupção, de se ter até criado um partido, quatro anos depois da saída de cena de Sócrates, que tem a luta contra a corrupção como bandeira com expressões como ‘limpeza’ e ‘ordem’, ao mesmo tempo que pouca eficácia se vê nessa luta, não só cria uma ‘realidade aumentada’, o tal holograma da corrupção, vendo-a em todo o lado, mas, mais que isso, activa processos redentores. Quando um segundo primeiro ministro cai não por factos concretos e acusações claras, mas apenas em função de suspeições, estamos perante a percepção da necessidade de bodes expiatórios, oferecendo-se assim em sacrifício aquele que mais poder tem pois ele incorpora a nossa consciência do problema e a nossa incapacidade para o resolver: o seu sacrifício é a nossa redenção temporária em relação a um medo profundo que temos dificuldade em perceber e se torna impossível resolver. E tendo em conta todas as notícias dos meses mais recentes relativamente a situações mais ou menos graves na sociedade política (roubo de malas, pedofilia, condução sob influência de álcool, etc), assim como os processos mais complexos dos últimos anos (Influencer, tutti frutti, etc.), o sacrifício de um primeiro-ministro funciona como uma redenção adequada. Mas não é claro que não tenhamos que ter continuamente vítimas sacrificiais.

No caso deste enredo, procurou-se quase de todas as formas que se projectasse no primeiro-ministro a culpa e procurou-se mesmo (faz parte da fórmula) que o primeiro ministro aceitasse que tem culpa. Aliás era fundamental que ele aceitasse que tem culpa para que o sacrifício funcione e que se considere que houve uma redenção, uma limpeza........

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