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O que é isso de “defund the police”?

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26.08.2024

1. Ainda a questão antropológica

Continuemos no domínio antropológico. Afinal, como diz Carl Schmitt em O conceito do político, “Poder-se-ia pôr à prova todas as teorias do Estado e todas as ideias políticas com base na sua antropologia, repartindo-as, de acordo com isso, segundo elas pressuporem, consciente ou inconscientemente, um homem ‘mau por natureza’ ou ‘bom por natureza’.”

A questão convoca, na verdade, dois níveis de reflexão. O primeiro é o de saber se existe algo como uma natureza humana a partir da qual podemos pensar politicamente; o segundo é o de saber se essa natureza é boa ou má. Na segunda metade do século XX, o pensamento pós-moderno pôs em causa a primeira daquelas perguntas, considerando que a ideia de natureza humana era meramente resultado de uma construção filosófica e política. O ser humano seria eminentemente cultural pelo que poderia ser moldado e reformulado socialmente sem limites (é por essa razão que muitos, sobretudo na sociologia, optam pelo uso da expressão “condição humana”). Na semana passada, argumentei que os conhecimentos científicos mais recentes afastam esta posição pós-moderna e demonstram como as tradições antigas foram capazes de compreender a nossa natureza (a sua sabedoria é-nos, assim, ainda necessária).

Mas, havendo uma natureza humana, ela será “boa” ou “má”? Em termos de teoria política, este antagonismo pode ser pensado a partir de dois autores modernos: por um lado, Thomas Hobbes, que, no seu Leviatã, defende que o homem é o lobo do homem (em bom rigor, a afirmação de que o homem é mau implica uma valoração moral que Hobbes não faz); por outro, Jean-Jacques Rousseau, que, nos seus Discursos e em Emílio, defende uma bondade natural do ser humano, que seria corrompida pela vivência em sociedade. A ciência recusa esta divisão: o homem não é naturalmente bom, nem naturalmente mau – somos, antes, condicionados por diferentes estímulos que nos levam a comportarmo-nos de uma ou de outra maneira. Basta ver, aliás, como o nosso cérebro responde a neurotransmissores químicos mais altruístas e mais egoístas, como explica, de modo divertido, Simon Sinek. E, mais uma vez, dá-se respaldo às velhas tradições.

Ainda assim, a observação de Schmitt faz sentido: é que aquele critério é muitas vezes útil para apreciar propostas e posicionamentos políticos. Consideremos, a esse propósito, um livro publicado muito recentemente pela ex-jornalista do The New York Times, Nellie Bowles: Morning After the Revolution: Dispatches from the Wrong Side of History (será que já está prevista tradução entre nós?). Não se trata de um trabalho teórico: Bowles é jornalista e o livro consiste num conjunto........

© Observador


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