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Trazer água no bico

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28.10.2024

Uma crítica literária é algo que se agradece, mesmo quando essa crítica é negativa. Contudo, se aquilo que se quer apresentar como crítica literária ou estudo académico parece conter, também, má-fé, então esse agradecimento, exige uma explicação, algumas considerações prévias e, até, uma refutação da crítica. Vamos a isso?

Margarida Rendeiro é investigadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova, de Lisboa. Esta senhora decidiu fazer um estudo sobre a minha escrita de ficção. Não sobre os oito romances que já escrevi, mas apenas sobre dois deles, que se passam quase inteiramente no mundo tropical e que tocam de uma forma ou de outra nas questões do início da colonização de Angola (Moçâmedes) e da escravatura. Os romances em questão são Uma Fazenda em África, publicado em 2012, e Do Outro Lado do Mar, publicado em 2015. Ou seja, já têm ambos mais de nove anos e pode acrescentar-se que tiveram quer um, quer outro, boa circulação e que foram lidos por muita gente, tendo ambos várias edições — Uma Fazenda em África já vai na 16ª.

Aqui chegados poderão os leitores do Observador perguntar porquê então só agora surge esta crítica de Margarida Rendeiro, tantos anos após a publicação desses dois romances? É que, na verdade, talvez não seja apenas uma inocente crítica literária, mas também um disfarçado ataque explicável no âmbito das guerras culturais e discussões sobre memória e passado colonial que têm marcado estes últimos anos, e nas quais tenho estado envolvido. Não concordando com o que eu defendo, mas não me podendo cancelar e não tendo conhecimentos suficientes para me contraditar em debate frontal sobre história da escravatura e outros temas de história colonial, os woke da nossa praça têm seguido caminhos ínvios e procurado estratégias ardilosas em que os ataques ad hominem abundam para tentarem descredibilizar-me. Como para além de historiador sou, também, romancista, e como a nível da História os woke são deficitários — se o não fossem não seriam woke —, alguém se terá lembrado de que eu poderia ser atacado de viés pela porta dos meus romances.

Não sei se esse alguém foi Margarida Rendeiro, mas sei que foi ela que, por coincidência ou não, assumiu esse combate. Estudou os dois livros que referi acima e apresentou esse estudo no Iº Congresso de História Pública, realizado no início de Junho de 2023 na Torre do Tombo, e em mais dois ou três eventos académicos. Não assisti a nenhum deles, mas chegaram-me os seus ecos e eles levam-me a fazer-lhe duas perguntas. Terá estudado os dois romances com a imparcialidade que é exigível a trabalhos desta natureza? Tê-los-á analisado apenas por curiosidade intelectual ou interesse literário e académico, ou como forma de atacar um adversário político? É que pelos comentários e notas preconceituosas e maldosas que a autora — que é comentadora na página de Facebook do académico-difamador Pedro Schacht e noutras — foi deixando cair ao longo do tempo, e por apreciações que mais pessoas woke fizeram sobre a intencionalidade do estudo em questão — houve até quem considerasse que esse estudo seria a forma de me desarmar ou abater —, há fortes razões para suspeitar de má-fé, mas Margarida Rendeiro esclarecerá, se assim o entender.

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Esclareça-o ou não, o que importa dizer é que a investigadora resolveu, entretanto, publicar o seu estudo, dando-lhe o título de Sobre Romances Históricos e Anacronismos. Esse estudo está online e pode ser lido por qualquer pessoa. Não vou entrar para já na refutação detalhada à forma como Rendeiro deturpou e tresleu o que escrevi nos romances em causa. Remeto os leitores que tenham interesse em lê-la para a parte final deste texto, onde, à laia de longa adenda e com o título “Leituras tortas”, a encontrarão na íntegra. Aqui bastará dizer que Margarida Rendeiro quis demonstrar, através desses dois romances, que eu seria guardião e transmissor do pensamento lusotropicalista e que, para sê-lo, teria tendenciosamente retirado relevância aos negros — o que é falso — e omitido, ou referido apenas vagamente, a violência colonial dos portugueses, ao mesmo tempo que acentuaria a sua brandura — o que é igualmente falso.

A investigadora Rendeiro partiu para a leitura de dois dos meus romances históricos com várias pedras nos sapatos e várias outras nos bolsos, prontas para me serem lançadas, o que não é boa receita e não produziu bom cozinhado. Uma Fazenda em África e Do Outro Lado do Mar tiveram dezenas de recensões críticas, geralmente muito favoráveis. Algumas foram escritas por conceituados críticos literários, outras por simples leitores interessados, mas nunca tinham tido uma crítica com tanta água no bico. Tudo indica que estamos perante o exemplo de um novo método a que a gente woke deita mão para tentar atingir os seus objectivos políticos. Se, como suspeito, for esse o caso, então saúdo Margarida Rendeiro e os seus correligionários por me ajudarem, ainda que sem querer, a ilustrar novamente essas artimanhas.

Há dois livros de minha autoria — Uma Fazenda em África (2012) e Do Outro Lado do Mar (2015) — que são, para Margarida Rendeiro, exemplos e veículos do lusotropicalismo. Para tentar demonstrar essa tese, a investigadora omitiu certas coisas, fantasiou e deturpou outras, ou pura e simplesmente fechou o cérebro ao entendimento do que eu escrevi.

Ainda que tenha reconhecido que eu introduzi “rigor na representação dos factos, colocando na boca de personagens histórias e convicções” prevalecentes no Portugal do século XIX (p. 14), Margarida Rendeiro não valorizou esse rigor, muito pelo contrário, considerou-o uma limitação. Em sua opinião, ao escrever aqueles dois romances, eu deveria ter “desconstruído” as concepções do século XIX (p. 11) e ter colocado em questão “a visão lusotropicalista sobre o passado colonial português” (p. 21). É que, para Rendeiro, os romances históricos deveriam obedecer a um propósito político purificador e justiceiro, numa palavra, a um propósito woke. “Num romance histórico” — escreveu ela —, “o desafio passa pelo exercício ficcional de desvelar ou ocultar (sic) nuances e complexidades, subscrevendo ou desafiando discursos lusotropicalistas em torno de heroicidades e branduras portuguesas, nomeadamente através da gestão do esclarecimento dos factos históricos para o leitor, tornando-os mais obscuros (sic) ou claros e alinhando-o, ou não, com a memória colectiva que o poder consagrou. Esse foi o desafio proposto pela académica Saydiya Hartman, quando pensou na estratégia da efabulação crítica que consiste em preencher os vazios do arquivo colonial que desumanizam ou tipificam os colonizados com o que........

© Observador


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