A narrativa woke sobre a história da escravatura parte de um conjunto de dogmas. Um recente artigo de Miguel Vale de Almeida (MVA), escrito na ressaca das declarações de Marcelo sobre reparações, é muito ilustrativo a esse respeito. Nesse artigo o antropólogo faz a apologia das referidas reparações e visa, sobretudo, a demolição daquilo a que chama “racismo estrutural”. Mas para fazer essa apologia e visar essa demolição, MVA parte da ideia de especificidade única (e especialmente maléfica, acrescento eu) do tráfico transatlântico de escravos. Diz o autor o seguinte: “o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, em que Portugal foi protagonista, não foi da mesma natureza, grau e consequências que a escravatura noutros contextos históricos e geográficos, incluindo a própria África. Além dos seus aspectos económicos e do seu efeito no enriquecimento da Europa e dos colonialismos de assentamento nas Américas, um ds seus aspectos centrais (…) foi ter criado as condições para a invenção da ideia moderna de ‘raça’ como estrutura de desigualdade e hierarquia. Racismo, portanto, para o que até na época muitos consideravam uma desumanição insustentável”.
Não sei a que se refere MVA quando fala em natureza única do tráfico transatlântico de escravos. Se é por ter sido efectuado em navios, nada disso era novo. Já assim era o tráfico de pessoas no Mediterrâneo e no Índico. Se era por ser um tráfico a larga distância também não porque desde o século VIII que os árabes e berberes faziam tráfico de escravos negros através do deserto do Sara. É claro que todos os tráficos têm as suas especificidades, as suas crueldades, os seus horrores. O tráfico transatlântico era muito brutal, muito desumano e desumanizador, mas imaginará MVA que os escravos negros que eram obrigados a atravessar esse deserto iam em agradável passeio? Conhece as taxas de mortalidade das castrações de crianças negras para serem usadas nos haréns? E saberá das condições de transporte nos barcos (pangaios e outros) que os traficavam a partir da costa oriental africana? Eu dou uma ajuda: nos pangaios árabes que a Royal Navy capturava no Índico, no século XIX, as pessoas eram transportadas em três camadas sobrepostas, separadas por esteiras, com as pessoas mais robustas na camada inferior, na esperança, muitas vezes gorada, de que suportassem o peso das outras duas sem ficarem esmagadas ou sufocadas (ver imagem).
E quanto a grau? Se com essa palavra MVA nos quer falar de quantitativos, então é preciso dizer que também não é único ou, sequer, superlativo o número de escravos (12,5 milhões) transportados por povos ocidentais, durante 400 anos, através do Atlântico. O império romano traficou pelo menos........