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A escravatura moderna entra-nos pela casa

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Há poucos dias, a minha família recebeu em casa uma encomenda de um móvel. Nada de extraordinário: apenas mais uma entrega numa cidade habituada ao vaivém diário de estafetas, carrinhas e prazos para cumprir. Dois senhores brasileiros muito simpáticos e prestáveis apareceram à porta. Um deles, franzino mas teimoso na sua determinação, insistia em transportar sozinho uma das partes do móvel, demasiado grande para caber no elevador e demasiado pesada para ser carregada por um único par de braços, escada acima. O colega, igualmente disponível, carregava o resto do conjunto, ambos claramente pressionados pelo relógio e pelas outras entregas que, imagino, os esperariam ao longo de um dia interminável.

“Eu estou habituado, eu consigo!”, disse o primeiro, com um sorriso quase orgulhoso, como quem está mais preocupado em não atrasar a rotina do que em poupar a coluna. Oferecemo-nos para ajudar, claro. No final, depois do esforço e de uma breve troca de agradecimentos, aqueles dois homens seguiram o seu caminho, uma vida frenética, dura, cheia de pesos que carregam muito para além dos móveis que transportam. Pesos que não se vêem e que raramente se discutem.

Fiquei a pensar neles. E, sobretudo, na facilidade com que, enquanto sociedade, construímos narrativas hostis sobre pessoas como eles. Pessoas que chegam de outros países, outras culturas, outras realidades, e que são recebidas, demasiadas vezes, com desconfiança, crítica, xenofobia e, tristemente, até violência física. Uma parte significativa do discurso público sobre imigrantes tornou-se uma espécie de reflexo condicionado: são “aproveitadores”, “preguiçosos”, “indesejados”. Repetem-se estas palavras com a segurança de quem nunca se deu ao trabalho de olhar........

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