A paz russa

O significado de paz para a Rússia projecta-se muito para além do vocabulário e das próprias questões geopolíticas. É mais do que uma dinâmica diplomática. É um instrumento de construção identitária. Uma força narrativa que distorce a história para recuperar um território imaginado e concretizar uma ilusória renovação imperial assente no ressentimento.

A paz não é o contrário da guerra convencional. A paz russa é a configuração política que a guerra assume quando deixa simplesmente de ser necessária. É disso que se falará quando começarem as negociações com a Ucrânia.

Este processo de construção ideológica iniciou-se com a implosão da União Soviética e subsequente marginalização da Rússia e dos povos eslavos das grandes questões pós-1991. Moscovo resvalou para a periferia da geopolítica mundial, desligada das grandes decisões da política internacional, convertendo-se num fantasma exótico no horizonte ocidental.

A facilidade expansionista da NATO tornou-se símbolo dessa irrelevância percepcionada e, consequentemente, uma ameaça existencial para a Rússia.

Foi nesse espaço ignorado, e raramente compreendido, que as elites pós-soviéticas foram formulando silenciosamente uma nova realidade pós-imperial, algures entre a nostalgia da Guerra Fria e a urgência da construção de um mundo multipolar que reconheça o seu papel como potência nuclear.

Essa reconquista do passado que já passou tornou-se inevitavelmente militar. Não por um qualquer fatalismo histórico, mas porque os mecanismos de diálogo com o Ocidente foram negligenciados ou simplesmente desligados. O desconhecimento sobre a realidade para lá dos Urais tornou-se penosamente estrutural e ajuda a explicar o choque emocional provocado pela invasão da Ucrânia e a consequente dor empática que tomou conta dos europeus desde então.

Estas são as boas notícias.

Quando se começar a negociar um cessar-fogo, o Ocidente irá descobrir que a Rússia atribui um valor substancialmente diferente à paz. A sua visão do mundo assenta agora na revindicação pela força dos seus direitos históricos no espaço pós-soviético e na exigência do........

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