Se adotarmos a noção ateia e materialista do mundo natural como a totalidade da realidade, tudo o que existe e vale a pena saber, então é legítimo assumir que a repetição de experiências sem limite pode não permitir chegar a uma noção de verdade tal como ela é: absoluta. A limitação da compreensão puramente empírica e materialista do mundo, pode não ser capaz de chegar a uma verdade absoluta, na medida em que a ciência, muitas vezes opera por meio de experiências repetidas para chegar a conclusões que são válidas apenas dentro dos limites do que pode ser observado e testado.

Se quisermos ir mais longe, ao adotar esta noção podemos com facilidade despir o homem da noção de existência de uma alma ou de um princípio transcendente; então, a própria emoção e os sentimentos em geral podem estar em causa. Raiva, alegria, euforia, tristeza ou saudade, não passariam de fenómenos de libertações químicas no nosso cérebro que podem ser depreendidos, compensados e induzidos quimicamente (qualquer semelhança com o admirável mundo novo de Huxley não é por acaso). Poesia, música, literatura não passariam de um conjunto de palavras, sons e letras sem qualquer significado especial, transcendente à razão humana. Se o universo da verdade materialista e sensista fosse tudo o que havia para conhecer, a verdade antropológica-existencial de Shakespeare, Dostoievski ou Tolstói sobre a condição humana não passam de meras narrativas.

Se quiser ser meramente ultra racionalista, também no domínio ético: o que me impede de ser um utilitarista prático em tudo que faço, de utilizar e fazer do outro aquilo que eu bem entender dele, sem quaisquer limites, da forma que me aprouver, para satisfazer os meus desejos e objetivos? Se a verdade não é inteligível, nem transcendente, nem absoluta, o que há de irracional nisso? Opostamente, se adotarmos uma perspetiva judaico-cristã, não chegaremos às mesmas parodoxais conclusões.

No entanto, se o mundo é perfeito desde a sua imensidão até ao mais ínfimo e microscópico pormenor, ele é inteligente, pelo menos na medida em que é perfeito e adaptativo. Isto é, para descobrir fenómenos da ordem natural temos de acreditar que o mundo tem uma determinada ordem inteligível que o rege; de que a verdade que procuramos conhecer sobre o mundo real e que o organiza transcende a nossa realidade e é externa à nossa razão, mas a partir da qual poderemos chegar a uma crescente e cada vez mais ajustada aproximação ao mesmo.

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Os pioneiros da revolução científica tinham a noção de que o universo teria sido criado por um arquiteto, um criador, que usava princípios matemáticos para criar o universo. Paremos um brevíssimo momento para refletir sobre isto. O que é a matemática senão uma forma de linguagem, que existe simultaneamente dentro e fora do espaço, tempo e matéria sem ser nenhum deles, mas estando em cada um deles? O que é senão a forma mais subtil, perfeita, inteligível e exata de mapeamento e conhecimento do mundo?

Se eu atirar um objeto, intuitivamente sabemos que ele irá cair. Mas se quisermos refletir e aprofundar esse fenómeno, o que é que vai acontecer a esse objeto? Vai seguir uma equação matemática exata. Se olharmos a tudo o que nos rodeia, podemos concluir que tudo segue pequenas equações matemáticas exatas e subtis. Estes fenómenos inteligíveis, a noção deles, como forma discursiva da realidade, seria algo surpreendente para qualquer pessoa que não tenha tido a sua mente desenvolta pelo teísmo cristão e pela noção do “logos”, como foi o caso dos pioneiros da revolução científica. O conceito “logos”, em todo o seu sentido, diz respeito, não só, ao princípio da criação do mundo, à criação divina, no sentido metafísico, como a todo o princípio estrutural subjacente à realidade. Diz respeito à palavra de Deus, à palavra encarnada, à ordem gerada a partir do caos, à criação divina que criou e sustém o universo através da linguagem, do mesmo modo que diz respeito ao princípio de inteligibilidade e racionalidade, que subjaz ao universo e nos permite conhecê-lo e compreendê-lo.

O mundo real em toda a sua forma é ordenado pela linguagem, desde a maior, como um vulcão, à mais ínfima como o mapa genético de uma única célula, tem uma forma de linguagem codificada, mas percetível. A única coisa que sabemos capaz de construir e descodificar linguagem é uma mente. Para quem tenha o teísmo cristão presente, isto não é surpreendente, esta forma de linguagem é uma linguagem divina, o logos eterno.

Assim como ao lermos uma obra, sem o vermos ou conhecermos, reconhecemos que existe o seu autor que a criou e escreveu, ou quando vemos um filme, sabemos que houve um argumentista e realizador que o desenvolveram, ou ao ouvirmos uma música sabemos que alguém a compôs e lhe fez a letra mesmo que não conheçamos, numa lógica macro, que tudo transcende e sustém, deduzimos a existência de um criador porque dele são reflexo as próprias criaturas. Como assim?

Mas coloquemos primeiro a questão, porque é que os humanos são a única criatura no universo que é capaz de descobrir as leis do universo?

A ideia bíblica de que fomos «criados à imagem de Deus», remete para a noção de que existe algo de intrinsecamente divino nos homens e nos diferencia de todas as outras espécies. De que fomos criados para compreender a criação divina, compreender o mundo que nos rodeia, sermos um elemento integral de domínio e harmonia sobre o mundo natural, demonstrativo dessa nossa “faísca” de divindade e da nossa finalidade de gerador de ordem na imensidão do cosmos. Não duvido de que, por esta altura, alguns eventuais leitores mais resistentes estejam a desconfiar de que se está aqui a fazer a apologia do criacionismo e a negar o evolucionismo. Nada disso.

Quão surpreendente é a nossa capacidade de compreensão do mundo se assumirmos a posição naturalista como uma verdade axiomática? De acordo com o mais plausível cenário naturalista – o darwinismo – a nossa capacidade de razão é meramente fruto da seleção natural a agir sob variações dentro de uma população. A seleção natural favorece organismos cujas características ajudam a adaptar, sobreviver e reproduzir. No entanto, se isto nos permitiu suprimir necessidades básicas, como a caça, reprodução e, no fundo, a sobrevivência da espécie, até que ponto nos permitiu refletir, explorar e aprofundar sobre questões éticas, filosóficas e até políticas? De um ponto de vista evolucionista a nossa capacidade para a razão não foi feita para tal; não tomem a minha “opinião” como garantida, afirmou o próprio Darwin:

Surge-me sempre a terrível dúvida se as convicções da mente do homem, que se desenvolveu a partir da mente de animais inferiores, têm algum valor ou são de todo confiáveis. Alguém confiaria nas convicções da mente de um macaco, se é que existem convicções em tal mente?(Charles Darwin To William Graham 3 July 1881)

A mente de um macaco não foi – seguramente – feita para perceber as leis do universo ou debater-se com questões filosóficas, porém, de um ponto de vista meramente evolucionista-somático, também a mente humana o não terá sido nos seus mais distantes primórdios. Ainda que a evolução dos hominídeos, com mudanças alimentares e anatómicas, libertação das mãos e nova volumetria da caixa craniana tenham desempenhado o seu papel, e seja arqueologicamente manifesto que desde que houve comunidades de homo sapiens sobre a Terra tenha havido primitivas manifestações de “arte” e “espiritualidade”, só por si, nunca a capacidade “especulativa” e de “representação” dos mais antigos expoentes da nossa espécie teria condições de ir muito longe, em coerência e segurança.

Se, assumindo uma postura cética, recusarmos previamente a ideia de que o universo tenha sido criado por um arquiteto cósmico, com um desígnio, uma concepção inicial e um plano de intervenção sujeito às contingências evolutivas da própria obra, um arquiteto que mantém e sustenta a criação por meio do seu “discurso”, ou pelo menos tendo-lhe dado o impulso inicial antes de entregá-lo às leis naturais, como poderíamos razoavelmente esperar que o universo fosse inteligível? Especialmente quando essas leis seguem uma forma discursiva, cognoscível e matemática?

Assim, a inteligibilidade do universo converge com a revelação cristã; filosofia e teologia, ciência e fé são abordagens autónomas, mas que se completam e harmonizam.

As ideias fundacionais que deram lugar à revolução científica estão intimamente ligadas e foram influenciadas pela teologia cristã. Não conhecer e reconhecer isto é cuspir na mão do legado civilizacional que nos deu de comer.

Inteligibilidade, compreensão e desejo de verdade: o universo pode ser depreendido, compreendido e nós desejamos conhecê-lo; este é elementar ponto de partida, primeiríssima hipótese, que tomamos por garantida.

Acreditamos que o universo pode ser percebido, que nós somos o único ser à face da terra capaz de o perceber, compreender, admirar e mesmo (e talvez sobretudo) amar, vendo toda a criatura situada no Espaço e no Tempo como um reflexo da Sabedoria Divina e como uma oportunidade de um «itinerário da mente» para a maior das verdades, ou aquilo que São Tomás de Aquino designou de “Sumo Bem”, Deus.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.

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Em torno de Oppenheimer II

Em torno de Oppenheimer II

Se adotarmos a noção ateia e materialista do mundo natural como a totalidade da realidade, tudo o que existe e vale a pena saber, então é legítimo assumir que a repetição de experiências sem limite pode não permitir chegar a uma noção de verdade tal como ela é: absoluta. A limitação da compreensão puramente empírica e materialista do mundo, pode não ser capaz de chegar a uma verdade absoluta, na medida em que a ciência, muitas vezes opera por meio de experiências repetidas para chegar a conclusões que são válidas apenas dentro dos limites do que pode ser observado e testado.

Se quisermos ir mais longe, ao adotar esta noção podemos com facilidade despir o homem da noção de existência de uma alma ou de um princípio transcendente; então, a própria emoção e os sentimentos em geral podem estar em causa. Raiva, alegria, euforia, tristeza ou saudade, não passariam de fenómenos de libertações químicas no nosso cérebro que podem ser depreendidos, compensados e induzidos quimicamente (qualquer semelhança com o admirável mundo novo de Huxley não é por acaso). Poesia, música, literatura não passariam de um conjunto de palavras, sons e letras sem qualquer significado especial, transcendente à razão humana. Se o universo da verdade materialista e sensista fosse tudo o que havia para conhecer, a verdade antropológica-existencial de Shakespeare, Dostoievski ou Tolstói sobre a condição humana não passam de meras narrativas.

Se quiser ser meramente ultra racionalista, também no domínio ético: o que me impede de ser um utilitarista prático em tudo que faço, de utilizar e fazer do outro aquilo que eu bem entender dele, sem quaisquer limites, da forma que me aprouver, para satisfazer os meus desejos e objetivos? Se a verdade não é inteligível, nem transcendente, nem absoluta, o que há de irracional nisso? Opostamente, se adotarmos uma perspetiva judaico-cristã, não chegaremos às mesmas parodoxais conclusões.

No entanto, se o mundo é perfeito desde a sua imensidão até ao mais ínfimo e microscópico pormenor, ele é inteligente, pelo menos na medida em que é perfeito e adaptativo. Isto é, para descobrir fenómenos da ordem natural temos de acreditar que o mundo tem uma determinada ordem inteligível que o rege; de que a verdade que procuramos conhecer sobre o mundo real e que o organiza transcende a nossa realidade e é externa à nossa razão, mas a partir da qual poderemos chegar a uma crescente e cada vez mais ajustada aproximação ao mesmo.

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