Quantos Salazares? - acácio gouveia

O recado que trazem é de amigos / Mas debaxo o veneno vem coberto / Que os pensamentos eram de inimigos” - Luís de Camões in Os Lusíadas Canto I, 105

Essa é boa! Evocar Salazar como figura tutelar da luta contra a corrupção! Se tal patrono convencer os portugueses, então confirma-se que somos um povo condenado ao equívoco do messianismo, como sugeria António Mário no passado número do JT. Há quatro séculos ansiávamos pelo regresso de D. Sebastião, que não passou dum incompetente reizito, responsável pelo catastrófico desaire de Alcácer Quibir e da perda da independência. Eleger um garotelho inábil para campeão salvador da pátria, um fedelho que, em dez anos, pouco fez pelo seu povo, e acabou por conduzi-lo ao abismo e à mais trágica hecatombe da sua História, não lembraria a maioria dos povos. É preciso ter mesmo muito mau gosto e enorme falta de discernimento.

E, em 2025, parece que a vocação para escolhas disparatadas se mantém. Apostar em Salazar (e logo três!) para combater a corrupção pode enganar muita gente, sobretudo os mais novos, que nasceram depois de...digamos,1960. Mas, para quem guarde recordações do salazarismo, lembrar-se-á que a imagem dum regime impoluto não coincide com as memórias desse tempo.

Só gentes da minha geração, ou mais velhas, se recordarão, por exemplo, da PVT – Polícia de Viação e Trânsito - que em 1970 foi extinta e substituída pela Brigada de Trânsito, após o afastamento de Salazar. Dizia-se então que o motivo estava na corrupção, de tal modo entrincheirada naquela corporação, que Caetano renunciou a qualquer tentativa de saneamento, optando pela solução mais radical e segura. Mais preocupado com a exactidão do que os actuais alucinados fazedores de narrativas desvairadas que por aí pululam, tentei confirmar esta versão, mas confesso que não encontrei senão referências a “desvarios” (seja lá o que isso signifique) na pesquisa sumária pela IA. Enfim, fica um testemunho embora com a ressalva referida.

Porém, historicamente confirmado, temos o caso Ballet Rose, versão lusitana do escândalo Epstein, lá dos ianques. Um sórdido episódio de pedofilia e prostituição, que envolveu várias figuras gradas do regime e que Salazar conseguiu abafar de tal forma que apenas foi punido o peixe miúdo, ficando incólumes os figurões. Aí está um exemplo de corrupção da justiça, naqueles tempos em que se poupava os poderosos. Hoje, é surpreendente que haja quem queira (por grossa ignorância, quero crer) regressar a épocas da honestidade e lisura, só que se equivocam redondamente. É que, seguramente, não foi o salazarismo tempo de honradez e decoro.

É verdade incontestada que o ditador era honestíssimo de contas pessoais e nunca se apropriou de quaisquer bens para seu proveito. Contudo, não é menos verdade que, em meio século de democracia, também há vários exemplos de chefes de Estado e do Governo a quem nada se pode apontar nesse domínio. Portanto, o mantra dos “últimos 50 anos de corrupção” atribuído ao regime democrático vigente é falsa propaganda.

Mas, voltando aos tempos de Salazar, desiludam-se os que ainda acreditam na pureza de costumes. O nepotismo, herdado de anteriores épocas e culturalmente entranhado, manteve-se incólume. É certo que não houve........

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