O Matuto, Sartre e os Botões das Calças

O Matuto entrou no Outono – não apenas o lá de fora, que pinta as folhas de laranja, mas o mais íntimo, que se entranha devagar nos gestos. De repente, acções que antes eram benignas, começam a pesar como sacos de milho molhado. Levantar da cama exige negociação diplomática com a lombar; calçar as meias parece manobra militar; e abotoar as calças… bom, abotoar as calças já entra na categoria das tarefas heróicas. Há dias em que o Matuto, para fechar o último botão, precisa quase da mesma concentração com que outrora alinhava argumentos teológicos. A idade é assim: ensina que o corpo tem cláusulas de letra miudinha que só aparecem quando o contrato já vai no fim.

E foi neste Outono doméstico que o Matuto tropeçou num velho pensamento de Jean-Paul Sartre. O francês tinha um faro existencial apurado. Ele sabia que o absurdo escorre dos gestos mais simples – o acto de apertar os sapatos, abrir uma porta, mastigar pão, abotoar um casaco – que denunciam a precariedade da nossa consciência. Cada gesto coloca-nos diante da facticidade, esse conjunto de dados brutos da existência que não escolhemos, mas que nos condicionam. O Matuto pondera que quem acorda um dia e percebe que cada gesto exige explicação – que viver deixou de ser natural – já entrou na esfera da “náusea” existencial. É quando o mundo, em vez de brilhar, grita. O enjôo não é físico, mas envolve um choque metafísico de perceber que nada nos sustenta senão a nossa........

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