Há uns dias, a minha mulher e eu fomos à obstetrícia de um hospital privado. As mães e os pais entretinham-se com a expectativa de verem os filhos nas ecografias, e esse encontro quase a preto e branco, que parece coisa de passado quando é coisa de futuro, distraía-os da lentidão das senhas.
Excepto uma mulher só, que agarrava a senha como se amachucá-la antecipasse a chamada. Aguardava sentada numa cadeira de rodas, e contraía as pernas, temendo que ao mínimo descuido o bebé lhe nascesse de supetão. Estava vigilante - e muito calada.
Chegada a sua vez, respondeu às perguntas de rotina. “A senhora tem seguro?”, perguntou-lhe por fim a funcionária, e a mulher mais se calava. O marido vinha a caminho, a mãe também, dizia. “Mas ó minha senhora, como é do seguro?”
Do seguro era que não tinha. Acabou por dizê-lo, e a confissão juntou dor à dor das contracções. No balcão adjacente, nós ouvíamo-la repetir: “Seguro não há, não há mesmo”. Mas então que fazia ela ali?
O que fazia ela ali nem a própria sabia. Começou com as águas em casa. Pegou no metro, depois caminhou até ao Santa Maria. Muita aflição, e ela numas urgências caóticas onde, a certa altura, lhe disseram que tinham fechado para partos. Aqui já se angustiava: agora, para onde?
Tem duas opções. As urgências do São Francisco Xavier - mas, menina, se quer que lhe diga, é o pandemónio, provavelmente não a assistem: as parturientes seguem para lá às cegas, é o que lhe digo -; e um hospital privado. Já andara de metro, já caminhara, quase fizera meio parto sozinha. Acabaram por a meter num táxi rumo ao privado.
Percebeu que estava noutro hospital, isso sim. E agora era preciso fazer nascer a criança. Mas entretanto chegou outro responsável, fato impecável e gravata com logótipos, que lhe dizia: “Muito bem, minha senhora, mas lamentavelmente não tem seguro. Para a recebermos sem custos tem de vir referenciada. O Santa Maria deu-lhe o papel?”
Se deu, ela não viu. Papel nenhum por ali, nem nos bolsos nem na carteira nem no colo. “Então, gostava que ficasse muito claro que podemos recebê-la, mas às suas expensas. Ou seja, tem de pagar.” E seguiu-se o cardápio dos preços, que começava em dois mil euros e ia subindo, subindo. “Pode pagar?”
Era pergunta de retórica. Nenhum papel detém um nascimento, isso ela sabia. Solícito, o responsável levou-a para dentro na cadeira de rodas. Eu fico eu fico eu fico, dizia ela, à procura da carteira, não tivesse esta ficado para trás.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
Há uns dias, a minha mulher e eu fomos à obstetrícia de um hospital privado. As mães e os pais entretinham-se com a expectativa de verem os filhos nas ecografias, e esse encontro quase a preto e branco, que parece coisa de passado quando é coisa de futuro, distraía-os da lentidão das senhas.
Excepto uma mulher só, que agarrava a senha como se amachucá-la antecipasse a chamada. Aguardava sentada numa cadeira de rodas, e contraía as pernas, temendo que ao mínimo descuido o bebé lhe nascesse de supetão. Estava vigilante - e muito calada.
Chegada a sua vez, respondeu às perguntas de rotina. “A senhora tem seguro?”, perguntou-lhe........