Especial de Natal |
O Natal sempre produz seus milagres. Alguns teológicos. Outros burocráticos. Este ano, um deles nasceu em Salvador, com carimbo, protocolo e pedido de indenização milionária. O Ministério Público da Bahia resolveu salvar o axé de si mesmo.
A acusação. Uma cantora – não citarei nomes para não comover os mais sensíveis – altera a letra de uma música. Ela ousou profanar a frase de um hit de carnaval. Onde antes se cantava Iemanjá, surge Yeshua – sim, no aramaico mesmo. Não é nome qualquer, mas o nome confessado, aquele que evoca e compromete.
Convém registrar o detalhe que organiza todo o resto. A cantora cantava a música antes. A alteração ocorre depois da conversão. Não se trata, portanto, de capricho performático nem de deleite estético arbitrário. Estamos nos referindo a gesto de coerência confessional: interromper uma invocação que já não pode ser pronunciada sem conflito de consciência. Guardem isso, é importante para o argumento.
O palco é de show, o gênero de entretenimento e o repertório de carnaval— e, ainda assim, o gesto ganha estatuto de processo. De escândalo. De racismo. Dois milhões de reais. Dano moral coletivo. A fé, ao que parece, adquiriu tutela especial quando passou pelo trio elétrico.
Sou intelectualmente fascinado pelo caso. Não pelo folclore midiático. Pelo raciocínio. Há ali uma operação conceitual ambiciosa, quase teológica política. Um ente do Estado tenta congelar o sentido de um símbolo religioso dentro de uma canção popular comercial. Uma metafísica aplicada a um produto feito para dançar, suar e desaparecer na Quarta-Feira de Cinzas.
O argumento acusatório, quando elevado à sua melhor forma, funciona assim. Religiões afro-brasileiras carregam uma história real de perseguição. A sociedade brasileira reproduz estigmas. A visibilidade de uma artista amplia gestos simbólicos. Ao retirar, em palco, o nome de um orixá e substituí-lo por Jesus Cristo, a performance produziria um efeito público de rejeição simbólica. Para a autopercepção das sensibilidades atuais, gera exclusão e dano coletivo, ainda que sem xingamento, ainda que sem ameaça. Mesmo assim,........