Era uma vez uma Comissão Parlamentar de Inquérito que se ocupava da TAP. E que quis averiguar todas as circunstâncias que haviam rodeado a demissão do presidente do conselho de administração e da presidente executiva da empresa, incluindo a existência de justa causa para o fazer.
Essa decisão surgiu na sequência de um relatório da Inspeção-Geral de Finanças. Sendo que o Governo também disse que, face à sua importância e às possíveis repercussões dela decorrentes, a mesma se encontrava juridicamente blindada, dando a entender, assim, que os seus fundamentos iam para além daquilo que se continha no relatório ou que, pelo menos, a solidez deste tinha sido confirmada.
Além disso, a comunicação social veiculou notícias sobre a existência daquilo que passou a designar-se por parecer. Compreensivelmente, a comissão de inquérito pediu-o. Mas o Governo negou-se a entregá-lo, começando por dizer que o documento datava de 2023 e que o objeto da comissão de inquérito abrangia, apenas, o período 2020-2022. E houve, até, uma ministra que considerou, a esse propósito, que “estaríamos num caso muito tratado na ficção científica de procurar investigar factos posteriores…”.
Esqueceu-se o Governo, então, de um pequeno detalhe: que a Resolução da Assembleia da República que institui a comissão de inquérito estabelece que ela se destina a “avaliar o exercício da tutela política da gestão da TAP SGPS e da TAP, S. A., em particular no período entre 2020 e 2022”.
Instalado um coro de protestos, e percebendo que tinha dado um passo em falso, o Governo passou a esgrimir o argumento “ad terrorem” – a defesa do interesse nacional. É que, antecipando-se que os demitidos vão contestar a decisão nos tribunais, a divulgação do parecer envolveria “riscos na defesa jurídica da posição do Estado”.
A oposição não gostou. Em coro, exigiu, de novo, o parecer, ameaçando com uma denúncia às autoridades judiciárias por crime de desobediência qualificada. E a própria comissão mandatou o seu presidente para insistir junto do Governo pela entrega.
Eis senão quando outro ministro se pronuncia, em plena Assembleia da República, sobre o tema. Para, surpreendentemente, afirmar que o tal parecer afinal… não existe! E que a decisão do Governo foi tomada, exclusivamente, com base no relatório da Inspeção-Geral de Finanças!
Finalmente, a cereja em cima do bolo: o Partido Socialista veio ajudar à festa, afirmando que se tratava, apenas, de “uma questão semântica, vocabular, que não se pode transformar numa contradição”.
O “era uma vez”, com que iniciei este texto é, como todos sabemos, uma locução utilizada na introdução de narrativas para crianças. Só que aquilo que resumidamente descrevi não é uma fábula dos irmãos Grimm ou de Hans Christian Andersen. É uma história real, passada em Portugal no século XXI e que tem como protagonistas principais ministros de um governo.
Mas, há uma coisa que aproxima muito esta história dos contos infantis: é que parece mais do domínio da fantasia do que da realidade!
Deixemos, agora, o tom irónico, e falemos com toda a seriedade. Há parecer ou não há? Se há, alguém faltou à verdade. Se não há, alguém faltou à verdade também. À comissão de inquérito e, muito mais importante do que isso, aos portugueses.
E, note-se, não estou a fazer qualquer juízo de intenção sobre os ministros envolvidos. Não parto, sequer, do pressuposto de que faltaram à verdade de forma deliberada, o que seria gravíssimo. Admito, portanto, que o tenham feito por desconhecimento, por falta de informação adequada, no limite, por falta de jeito. Mas fizeram-no e, até agora, daqueles que tinham de se retratar nada ouvimos.
Perante uma situação destas, é mais do que exigível ao primeiro-ministro que publicamente esclareça qual é, afinal, a verdade. Mas não. António Costa recusa dar explicações, invocando o extraordinário argumento de que seria irresponsável que um chefe do Governo interferisse no trabalho do Parlamento.
Interferir no trabalho do Parlamento? Mas de onde veio tão peregrina ideia?! É que quem interfere na atividade da comissão de inquérito é o Executivo, quando se enreda em contradições, afirma uma coisa que depois nega e cria a perceção de que está a querer obstaculizar o apuramento total dos factos, porventura porque lhe seria muito incómodo.
Acresce que o problema vai muito para além da Assembleia da República. Tem a ver com a sociedade no seu conjunto, que tem o direito de saber, a todo o momento, se pode confiar no governo que a conduz, se este não está à altura das suas responsabilidades ou se, no limite, não hesita em recorrer à mentira deliberada como arma política.
Critica-se muito – e nunca será demais - os populistas e demagogos, de esquerda ou de direita, por não respeitarem regras nem princípios e por tudo sacrificarem na sua ânsia de chegarem ao poder. Esquece-se, porém, que eles se alimentam dos erros cometidos, do calculismo na ação, dos objetivos não realizados, das promessas por cumprir. Mas também, em larga medida, da fragilidade das instituições. E nada fragiliza mais as instituições, aos olhos dos cidadãos, do que sentir que nelas não podem confiar, porque quem aí ocupa cargos pode estar a faltar à verdade.
Já percebemos que este governo não serve. Mas podemos pedir-lhe que, se não é capaz de resolver os problemas do país, ao menos não crie, com atitudes como aquelas que assumiu no contexto dos trabalhos da comissão de inquérito, condições adicionais de crescimento dos extremismos?