Crise política. Não há outra forma de qualificar aquilo que ocorreu nas relações entre o Presidente da República e o Governo. E não estamos perante uma crise qualquer, pois que as suas consequências serão, necessariamente, duradouras e, até, de resultado imprevisível. Vale a pena, por isso, e de entre o muito que haveria a dizer, deixar algumas notas sobre aquilo que a ela conduziu e ao que dela pode resultar.

A primeira nota tem que ver com um tema que eu próprio aqui abordei na semana passada – a responsabilidade política.

O Presidente da República deixou claro que essa responsabilidade envolve uma dimensão subjetiva e outra objetiva. A obrigação, para um titular de cargo político, de assumir as consequências dos seus próprios atos, mas também pelas erradas escolhas que faz no que toca, nomeadamente, aos seus colaboradores, bem como aos comportamentos destes.

Na situação que envolve o ministro das Infraestruturas, parece-me óbvio que ambas estão presentes. Daí a necessidade da sua demissão e a justeza da intervenção do Presidente da República ao solicitá-la.

Do seu lado, António Costa fez tudo mal. Montou uma encenação, pouco digna aliás, nas escadas da Residência Oficial, sem mais, ilibou o ministro de todas as suspeitas e ainda afrontou, de forma desnecessária, Marcelo Rebelo de Sousa.

E, como se tudo isso não fosse, só por si, suficientemente mau, no dia seguinte afirmou, textualmente, que “as condições para cada um de nós exercer as suas funções medem-se desde logo pelos resultados". Algo que é, em si mesmo, uma contracção inaceitável do núcleo essencial do conceito de responsabilidade política.

A segunda nota prende-se com o conteúdo e alcance dos poderes presidenciais em matéria de nomeação e demissão dos membros do Governo.

António Costa pretendeu transmitir a ideia de que se trata de um domínio reservado do primeiro-ministro, transformando a intervenção do Presidente da República numa mera certificação das decisões do Chefe do Governo.

Ora, não é assim, como, de resto, a própria prática constitucional evidencia, pois são bem conhecidas situações em que os Presidentes da República recusaram propostas de nomeação (ou, até, as condicionaram), bem como de casos em que a sua intervenção gerou demissões.

Tenho por adquirido que o Presidente da República não pode recusar a entrada para o Governo, ou a permanência nele, por razões de discordância pessoal ou de avaliação política. Mas nada impede – antes pelo contrário – que o faça por motivos ponderosos relacionados com o prestígio das instituições e a defesa do interesse nacional.

A ideia de que o Presidente da República é chamado a dar o seu acordo à nomeação de alguém e que tal nomeação passa a constituir um “cheque em branco”, é destituída de qualquer fundamento, político ou constitucional. Mais: seria um total absurdo.

Com efeito, da mesma forma que a entrada em funções de alguém resulta de um ato de união de vontades – a de quem propõe e a de quem nomeia -, a permanência nelas tem de resultar de similar entendimento. E isto, insisto, desde que haja razões fortes e objetivas para um pedido do Presidente da República que, por isso, o primeiro-ministro não pode recusar.

A terceira nota está relacionada com o tema da dissolução da Assembleia da República (ou, porventura, da demissão do Governo).

Valorizando acima de tudo o argumento da estabilidade formal, Marcelo Rebelo de Sousa optou por fazer um discurso arrasador para o Governo (e, em especial, para o próprio primeiro-ministro), mas por não recorrer aos seus poderes mais extremos.

É uma decisão inteiramente legítima, porque só a ele cabe fazer o juízo último das condições para tomar essas decisões. Mas seria também inteiramente legítimo que tivesse enveredado por um desses caminhos.

Porque, como também aqui escrevi, a atuação do Governo enquadra-se, sem qualquer dificuldade, no conceito de irregular funcionamento das instituições democráticas. Porque a instabilidade política material é notória e o seu único responsável é o Executivo. E porque o próprio Marcelo Rebelo de Sousa, há pouco tempo, não hesitou em dissolver antecipadamente a Assembleia da República, provocando eleições antecipadas a propósito da reprovação de um orçamento.

Ou seja: às vezes, retirar as devidas consequências da instabilidade política que já existe é a melhor maneira de gerar estabilidade política.

A quarta e derradeira nota liga-se com o futuro das relações entre o Presidente da República e o Governo.

Desde o início do seu mandato que Marcelo Rebelo de Sousa foi bem para além da ideia tradicional de cooperação institucional, privilegiando uma postura que releva, antes, do plano da chamada cooperação estratégica, uma ideia introduzida por Cavaco Silva na campanha eleitoral para as presidenciais de 2006 (e que, na altura, de muitas críticas foi alvo, por, supostamente, representar uma tentativa de intromissão nos poderes exclusivos do Governo).

Ninguém duvidará que esse tempo terminou definitivamente. Até porque os termos em que Marcelo Rebelo de Sousa caracterizou a vigilância acrescida a que o Governo doravante estará sujeito não admitem, creio, segundas leituras. Resta saber, porém, em que é que isso concretamente se irá traduzir.

Também já aqui escrevi – e reafirmo – que, ao contrário de alguns antecessores, Marcelo Rebelo de Sousa não tem uma agenda político-partidária própria. Não vai agir, por isso, com a motivação de criar benefícios para terceiros (leia-se, as oposições). Mas não vai mais perdoar erros e omissões. E vai tornar mais evidentes os que existem – e a sua lista é infindável.

Sucede que, quando se está no fio da navalha, a exigência acrescida é meio caminho andado para fazer ressaltar as incapacidades e as limitações, para agravar o que já corre mal e, consequentemente, para que o cenário de eleições antecipadas se vá reforçando.

Valia a pena tudo isto para manter um ministro que devia ter sido dispensado e que, para além disso, já não existe como tal? Ou o ministro foi um mero pretexto para travar uma guerra que António Costa calculou, mal, que podia ganhar?

QOSHE - Notas acerca de uma crise - José Matos Correia
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Notas acerca de uma crise

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10.05.2023

Crise política. Não há outra forma de qualificar aquilo que ocorreu nas relações entre o Presidente da República e o Governo. E não estamos perante uma crise qualquer, pois que as suas consequências serão, necessariamente, duradouras e, até, de resultado imprevisível. Vale a pena, por isso, e de entre o muito que haveria a dizer, deixar algumas notas sobre aquilo que a ela conduziu e ao que dela pode resultar.

A primeira nota tem que ver com um tema que eu próprio aqui abordei na semana passada – a responsabilidade política.

O Presidente da República deixou claro que essa responsabilidade envolve uma dimensão subjetiva e outra objetiva. A obrigação, para um titular de cargo político, de assumir as consequências dos seus próprios atos, mas também pelas erradas escolhas que faz no que toca, nomeadamente, aos seus colaboradores, bem como aos comportamentos destes.

Na situação que envolve o ministro das Infraestruturas, parece-me óbvio que ambas estão presentes. Daí a necessidade da sua demissão e a justeza da intervenção do Presidente da República ao solicitá-la.

Do seu lado, António Costa fez tudo mal. Montou uma encenação, pouco digna aliás, nas escadas da Residência Oficial, sem mais, ilibou o ministro de todas as suspeitas e ainda afrontou, de forma desnecessária, Marcelo Rebelo de Sousa.

E, como se tudo isso não fosse, só por si, suficientemente mau, no dia seguinte afirmou, textualmente, que “as condições para cada um de nós exercer as suas funções medem-se desde logo pelos resultados". Algo que é,........

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