De supetão, o Governo decidiu suspender a comercialização da série E de certificados de aforro e emitir uma nova série, baixando a remuneração base de 3,5% para 2,5%, o que corresponde a uma diminuição de cerca de 30%.

Nos últimos tempos, tem ficado evidente que uma das grandes especialidades do Executivo - a propaganda e a máquina em que assenta – vem sofrendo uma progressiva degradação. E o modo como lidou com esta questão confirma-o.

Com efeito, o “timing” da decisão foi para lá de infeliz. Num momento em que se multiplicam as críticas aos bancos por causa das baixíssimas taxas de juros dos depósitos que oferecem, levando os Portugueses a daí retirarem somas a níveis nunca antes registados e a aplicarem-nas, precisamente, em certificados de aforro, é preciso ter perdido a noção das coisas para anunciar uma medida desta natureza.

Inevitavelmente, muitos viram nesta iniciativa um favor aos bancos e uma subserviência aos interesses destes. Insuspeito que sou de simpatias por este Governo, estou particularmente à vontade para dizer que se me afiguram críticas sem sentido. Para ser claro: não acredito que o Governo o tenha feito porque os bancos o exigiram.

Agora que, tal como disse o Presidente da República, isso pode ser visto como um apoio implícito à banca, lá isso é verdade. Ora, em política, o que parece é. E o Governo pôs-se a jeito e vai pagar um preço desnecessário.

Se foi desastrado na forma, o Governo ainda andou pior na explicação do conteúdo. Provavelmente, porque a decisão é mesmo má e não há como defendê-la adequadamente.

Não sendo economista, não vou aprofundar questões para as quais não tenho a indispensável competência técnica. Mas, em termos muito simples, creio que o Governo justificou a sua opção, fundamentalmente, na necessidade de alinhar a remuneração dos vários instrumentos de dívida pública (leia-se, a taxa de juro que é paga) e de tornar mais previsíveis os termos e condições da amortização (isto é, de reembolso) dos empréstimos que assim obtém. Nenhum dos argumentos me parece, porém, colher.

Todos sabemos que, felizmente, o Estado português se consegue hoje financiar a taxas de juro bastante equilibradas, as quais estão longe daquilo que sucedia quando fomos obrigados a pedir ajuda externa, na anterior encarnação socialista. E que, em muitos casos, se encontram abaixo da remuneração dos certificados de aforro.

Nessa medida, a escolha do Governo poderia, até, ser vista como razoável. Sucede que os certificados de aforro não podem ser encarados, apenas, na óptica da obtenção de financiamentos pelo Estado. Há um outro objectivo, tão ou mais importante, que lhes está subjacente: o de promover a poupança dos cidadãos e das famílias.

Não vou aqui discorrer sobre uma coisa óbvia: a importância de poupar. Limitar-me-ei a dizer que o nosso País apresenta, nas últimas décadas, um problema crónico nesse domínio (fruto, em larga medida, de políticas públicas sem nexo, em que os socialistas são especialistas, e que, em vez de promoverem tal prática, apostam no crescimento económico pelo lado do consumo).

Apesar do significativo aumento de rendimentos, os Portugueses poupam hoje muito menos, em termos relativos, face aquilo que acontecia nas décadas de 80 ou 90. Resultado: o nosso País está entre aqueles que, na Europa, menos poupam e a nossa taxa de poupança é menos de metade da média da Zona Euro.

Os milhares de milhões de euros que, nos últimos tempos, foram mobilizados para certificados de aforro, podem significar, assim, um passo importante na inversão dessa tendência, que devia, portanto, ser saudado e estimulado. Em vez disso, é desincentivado, por via da diminuição da remuneração, sabendo-se, ainda para mais, que, face ao comportamento dos bancos, inexistem alternativas reais no mercado.

Os mais prejudicados com isto, para não variar, são os mesmos: a classe média. Aqueles que, sobretudo num cenário de profunda incerteza e de crise inflacionista, como aquele que atravessamos, ficam a “meio da ponte”. Porque, não sendo ricos, veem-se em dificuldades para lidar com uma situação de corte do rendimento real. Não sendo pobres, estão fora do universo de aplicação das medidas de apoio.

Por outro lado, não me parece que o pretexto da previsibilidade dos reembolsos e, consequentemente, da gestão do “stock” da dívida pública, seja mais do que isso – um pretexto. É certo que, ao contrário do que sucede com outros instrumentos de dívida pública, o resgate antecipado dos certificados de aforro não é penalizado, pelo que pode ocorrer em qualquer momento. Mas não me parece que o nível desse resgate seja causador de qualquer incerteza relevante e possa, em consequência, causar instabilidade na gestão daquele “stock”.

A juntar a tudo isto, a questão da diversificação dos locais de subscrição dos certificados de aforro. Em si mesma, a ideia é boa, uma vez que, tradicionalmente, só podia fazer-se no Instituto de Gestão do Crédito Público e nos Correios. Mas, permitir-se que possa passar a fazer-se aos balcões dos bancos e, sobretudo, enfatizar a relevância

disso, faz algum sentido? Serei eu que estou distraído ou os bancos não têm interesse em comercializar algo que concorre directamente com o seu produto, desviando para outros lugares recursos necessários ao desenvolvimento da sua actividade?

Em suma: mais uma prova da tendência do Governo para, quando tem dois caminhos, ir sempre pelo que está errado…

QOSHE - Aforrar - José Matos Correia
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Aforrar

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07.06.2023

De supetão, o Governo decidiu suspender a comercialização da série E de certificados de aforro e emitir uma nova série, baixando a remuneração base de 3,5% para 2,5%, o que corresponde a uma diminuição de cerca de 30%.

Nos últimos tempos, tem ficado evidente que uma das grandes especialidades do Executivo - a propaganda e a máquina em que assenta – vem sofrendo uma progressiva degradação. E o modo como lidou com esta questão confirma-o.

Com efeito, o “timing” da decisão foi para lá de infeliz. Num momento em que se multiplicam as críticas aos bancos por causa das baixíssimas taxas de juros dos depósitos que oferecem, levando os Portugueses a daí retirarem somas a níveis nunca antes registados e a aplicarem-nas, precisamente, em certificados de aforro, é preciso ter perdido a noção das coisas para anunciar uma medida desta natureza.

Inevitavelmente, muitos viram nesta iniciativa um favor aos bancos e uma subserviência aos interesses destes. Insuspeito que sou de simpatias por este Governo, estou particularmente à vontade para dizer que se me afiguram críticas sem sentido. Para ser claro: não acredito que o Governo o tenha feito porque os bancos o exigiram.

Agora que, tal como disse o Presidente da República, isso pode ser visto como um apoio implícito à banca, lá isso é verdade. Ora, em política, o que parece é. E o Governo pôs-se a........

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