A questão que me proponho abordar nestas linhas, já alguns anos passados sobre os acontecimentos que a motivaram, não tem uma resposta simples nem linear, nem terá sequer uma única resposta. Os resultados eleitorais de 2019 terão resultado de uma multiplicidade de fatores que ditaram um reforço eleitoral do PS que viria a ter consequências negativas e que foi a antecâmara da chantagem que levou à maioria absoluta em 2022.

Recapitulemos em breve: O Governo PS formado em 2015 foi possível devido à posição assumida pelo PCP de que essa era a fórmula possível para evitar a continuação da governação PSD e CDS que tinha tido consequências devastadoras para o povo e para o país. Para o PCP era muito claro que não se tratava de um Governo de esquerda, mas de um Governo minoritário do PS. Era claro que não se tratava de um Governo de coligação PS/BE/PCP/PEV, mas de um Governo PS obrigado a negociar medidas governativas com os partidos à sua esquerda. Era também claro que nem o PS nem o PCP tinham mudado de natureza e que mantinham divergências profundas não só quanto ao posicionamento de Portugal a nível internacional e no plano da União Europeia, mas também quanto às medidas necessárias para que o país superasse o atraso em que décadas de políticas de direita levadas a cabo por Governos do PS, do PSD e do CDS o haviam feito cair.

Já foi dito e já aqui o escrevi, que não obstante todas as insuficiências e limitações decorrentes das opções próprias do PS, a legislatura que decorreu entre 2015 e 1019 foi muito positiva. Os compromissos que o PS foi obrigado a assumir, propostos em larga medida pelo PCP e que iam muito para além do que continha o programa eleitoral do PS, permitiram recuperar muito do que foi perdido sobretudo entre 2009 e 2015 (com Governos do PS, do PSD e do CDS) e conquistar direitos, demonstrando que a austeridade defendida e executada pela direita não era inevitável e que o melhoramento das condições de vida dos trabalhadores e dos reformados era indissociável do desenvolvimento económico do país.

Parece-me hoje evidente que o que era muito claro para o PCP, não apareceu com suficiente clareza aos olhos de muita gente e foram criadas muitas incompreensões e ilusões acerca da natureza da solução política encontrada.

Desde logo, a ideia de “geringonça” com que a direita quis apoucar a solução governativa e que se instalou absurdamente no discurso mediático contribuiu sempre para dar uma imagem distorcida da solução governativa existente. Não se trataria de um Governo do PS obrigado a ceder, aprovando medidas vindas dos partidos à sua esquerda, mas de uma espécie de coligação em que, apesar de só um dos “coligados” fazer parte do Governo, acabaria por os representar a todos. Acresce que essa ideia convergia com o discurso obsessivo da direita que, inconformada com o seu afastamento do Governo e sabendo das responsabilidades do PCP nesse afastamento, tudo fez para difundir a ideia de que o PCP estava no Governo e, mais do que isso, fez do PCP o alvo principal dos seus ataques.

Mesmo não aceitando a ideia de que uma mentira mil vezes repetida passa a ser verdade, é inquestionável que uma mentira mil vezes repetida não deixa de ser tomada como verdade por muita gente, pelo que a solução governativa de 2015 gerou incompreensões contraditórias.

Gerou a incompreensão de algumas pessoas que não percebiam como, “estando o PCP no Governo” como muitos diziam, havia problemas que o PCP se propunha resolver e não eram resolvidos, mas gerou, mais profundamente e com consequências eleitorais significativas, a ilusão acerca de uma alteração, se não da natureza, pelo menos do posicionamento histórico do PS em relação ao PCP. Para muita gente, o PS tinha virado à esquerda.

Era um dado de facto que as medidas mais positivas e populares adotadas pelo Governo PS tinham sido propostas pelo PCP. Basta pensar na reposição dos quatro feriados que tinham sido abolidos, no fim dos cortes de salários e de subsídios de férias e de Natal, na gratuitidade dos manuais escolares, na enorme redução do valor do passe social, no aumento extraordinário das pensões ou na gratuitidade das creches.

Contudo, era também um dado de facto que em diversas áreas estruturantes, como a legislação laboral, o posicionamento do PS foi sempre de alinhamento com a direita, e a direita alinhou sempre com o PS, rejeitando as propostas do PCP.

Quem se der ao trabalho de analisar com rigor os sentidos de voto dos diversos partidos na AR na legislatura que decorreu entre 2015 e 2019, verificará que o PCP submeteu 185 projetos de lei a votação. Desses, 27 foram aprovados com os votos do PS e contra a direita, mas 111 foram rejeitados com os votos contra do PS com a direita.

Ouvi muitas críticas nesses anos, e mesmo depois deles, de que o PCP não valorizou suficientemente as conquistas que obteve para o povo português, e que com isso permitiu que fosse o PS a beneficiar eleitoralmente de medidas que aprovou, mas que não eram suas. Tudo isso porque o PCP, com excesso de rigor, insistia sempre em relativizar as conquistas obtidas, chamando a atenção para as insuficiências da ação governativa para não criar ilusões acerca da sua real natureza.

Convenhamos que a posição do PCP não era fácil. Entre a justa valorização de medidas adotadas pelo Governo PS por proposta do PCP e o justo olhar crítico para com um Governo do PS que insistia em não resolver problemas estruturais do país, havia um equilíbrio muito difícil. E tanto mais difícil porquanto estamos a falar de um Partido cujo tratamento pela comunicação social dominante oscila entre o silenciamento e a hostilidade declarada.

Perante um discurso falseado sobre a verdadeira natureza da solução política iniciada em outubro de 2015 e perante ilusões, incompreensões e confusões geradas, o PCP não teve outra solução que não fosse a de ter de explicar com o rigor possível a justeza das suas posições, sendo que o ambiente social, político e mediático em que vivemos convive mal com o rigor e com a explicação racional dos factos. Como costuma dizer um amigo meu com vasta experiência, em política, quem tem de explicar fica sempre a perder. Só que, quanto a isso, não há alternativa.

Seja como for, o resultado eleitoral de 2019 teve consequências. O PS sentiu que poderia chegar à maioria absoluta e alterou significativamente o seu posicionamento em relação aos partidos à sua esquerda, com um maior afastamento e sucessivas ameaças de demissão e vitimização, como que a criar condições para o que viria a acontecer em 2022. Por isso, também há lições a reter de 2019.

QOSHE - Lições de 2019 - António Filipe
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Lições de 2019

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26.12.2023

A questão que me proponho abordar nestas linhas, já alguns anos passados sobre os acontecimentos que a motivaram, não tem uma resposta simples nem linear, nem terá sequer uma única resposta. Os resultados eleitorais de 2019 terão resultado de uma multiplicidade de fatores que ditaram um reforço eleitoral do PS que viria a ter consequências negativas e que foi a antecâmara da chantagem que levou à maioria absoluta em 2022.

Recapitulemos em breve: O Governo PS formado em 2015 foi possível devido à posição assumida pelo PCP de que essa era a fórmula possível para evitar a continuação da governação PSD e CDS que tinha tido consequências devastadoras para o povo e para o país. Para o PCP era muito claro que não se tratava de um Governo de esquerda, mas de um Governo minoritário do PS. Era claro que não se tratava de um Governo de coligação PS/BE/PCP/PEV, mas de um Governo PS obrigado a negociar medidas governativas com os partidos à sua esquerda. Era também claro que nem o PS nem o PCP tinham mudado de natureza e que mantinham divergências profundas não só quanto ao posicionamento de Portugal a nível internacional e no plano da União Europeia, mas também quanto às medidas necessárias para que o país superasse o atraso em que décadas de políticas de direita levadas a cabo por Governos do PS, do PSD e do CDS o haviam feito cair.

Já foi dito e já aqui o escrevi, que não obstante todas as insuficiências e limitações decorrentes das opções próprias do PS, a legislatura que decorreu entre 2015 e 1019 foi muito positiva. Os compromissos que o PS foi obrigado a assumir, propostos em larga medida pelo PCP e que iam muito para além........

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