Salvo exceções, a política é um mundo habitado por oportunistas. Nicolau Maquiavel, há quinhentos anos, entrou para a história da ciência política moderna, ao escrever sobre o assunto, pondo o acento tónico na palavra cinismo. Mas a prática vinha da antiguidade e continua nos nossos dias, nos governos, nos partidos e na habilidade em manipular a opinião dos cidadãos. A ética, ou seja, o respeito pelos princípios, pelo interesse comum, pelos contemporâneos e pelas gerações vindouras, é uma palavra que faz rir, disfarçadamente, muitos dos que andam na política. Para estes, a única coisa que conta é o seu benefício pessoal, garantido pela manutenção no poder graças a uma clientela política.

No caso da UE, Viktor Orbán lembra-nos recorrentemente essa verdade. É o exemplo pior de um dirigente europeu. Orbán joga com um pau de dois bicos: por um lado, para mostrar que pertence ao clube das democracias, enquanto membro da UE, e, por outro, para se aproveitar ao máximo dos fundos disponíveis. O cajado em que se apoia chama-se Vladimir Putin. Isso permite-lhe gastar os dinheiros vindos de Bruxelas sem controlos a sério e governar sem respeito pelas regras democráticas e de modo corrupto. A contrapartida que lhe dá força passa por complicar a política europeia de uma maneira que agrade ao seu amigo de conveniência, o senhor da Rússia. Assim se explica que a Hungria continue sem aprovar a adesão da Suécia à NATO. Não há outra razão, que não seja prestar um favor a Putin. E também por isso impediu, até ontem, a ajuda financeira à Ucrânia -- 50 mil milhões de euros. Esse montante é indispensável para manter a Ucrânia à tona de água durante os próximos quatro anos. A Hungria tem-se igualmente oposto à criação de um outro fundo europeu, destinado à cooperação militar.

Tudo isto serve os interesses do imperialismo russo. Contribui para o enfraquecimento da Ucrânia e visa, a prazo, a desintegração da UE. Ora, a Rússia é neste momento a principal ameaça à paz na Europa. É um país hostil, um inimigo ao estilo do passado. Enquanto mantiver esse comportamento, a Rússia deve ser tratada como tal, sem hesitações. Orbán, quando se comporta como um aliado de facto de Putin, está a trair os interesses europeus.

É altura de chamar as coisas pelos nomes. Há anos, numa cimeira europeia, Jean-Claude Juncker deu uma palmadinha nas costas de Orbán e gracejou, apelidando-o de ditador. Hoje, poderia acrescentar, quem sabe, a palavra traidor.

Entretanto, na hora "H" em que é fundamental garantir o futuro da Ucrânia, vemos os EUA manietados meses a fio. O país está profundamente fraturado, na cena interna, do ponto de vista político e social, e enfrenta um número de problemas de política externa que dispersam as suas capacidades de intervenção e confundem a ordem das prioridades. É a fronteira sul. O alinhamento problemático com Israel. A obsessão com o Irão. A competição suicida com a China. O medo da loucura norte-coreana. A imprevisibilidade de Putin. E agora, o espectro de Trump. Tudo isto faz emergir duas grandes conclusões. A Europa, ou seja, a NATO deste lado do Atlântico, não pode confiar no auxílio dos EUA, no caso de um conflito no espaço europeu. E a Ucrânia tem de procurar estabelecer alianças bilaterais com países europeus e outros, no prosseguimento da sua resposta à invasão russa. Essas alianças deverão sobretudo ser estabelecidas com nações vizinhas ou próximas da Rússia. São Estados que mais tarde ou mais cedo poderão entrar na mira dos russos, se a Ucrânia não conseguisse resistir à agressão do Kremlin.

Os europeus devem intensificar o apoio à Ucrânia. A aprovação da assistência financeira para os próximos quatro anos é uma medida excelente. Em relação à crise ucraniana, a Europa tem adotado as posições mais apropriadas. O mesmo não se pode dizer no que respeita a Israel. Tem havido, por parte das grandes nações europeias, uma atitude incoerente perante o drama de Gaza. Engolem tudo o que Benjamin Netanyahu lhes serve de bandeja. Quando o primeiro-ministro de Israel quis fazer esquecer, na semana passada, as ordens preliminares do Tribunal Internacional de Justiça, que se dirigiam claramente ao governo israelita, falou dos 12 agentes da UNRWA que teriam participado nos ataques de 7 de outubro, num universo de 13000 funcionários da Agência em Gaza. Não apresentou qualquer tipo de provas, nem falou na desproporção colossal entre os números, nem no trabalho extraordinário que a UNRWA desempenha vai para 74 anos, mas a sua diversão foi um golpe de mestre. E conseguiu criar um escarcéu contra uma organização que tem ajudado milhões de vidas palestinianas. Vários países europeus aproveitaram oportunisticamente a onda criada por Netanyahu.

Muitos pensarão que do lado europeu impera a mansidão, a política de poltrona e a incoerência. Ou, tão simplesmente, domina o cinismo de quem finge não entender o que significa a palavra ética.

Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

QOSHE - Da Ucrânia a Gaza: onde está a coerência europeia? - Victor Ângelo
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Da Ucrânia a Gaza: onde está a coerência europeia?

37 40
02.02.2024

Salvo exceções, a política é um mundo habitado por oportunistas. Nicolau Maquiavel, há quinhentos anos, entrou para a história da ciência política moderna, ao escrever sobre o assunto, pondo o acento tónico na palavra cinismo. Mas a prática vinha da antiguidade e continua nos nossos dias, nos governos, nos partidos e na habilidade em manipular a opinião dos cidadãos. A ética, ou seja, o respeito pelos princípios, pelo interesse comum, pelos contemporâneos e pelas gerações vindouras, é uma palavra que faz rir, disfarçadamente, muitos dos que andam na política. Para estes, a única coisa que conta é o seu benefício pessoal, garantido pela manutenção no poder graças a uma clientela política.

No caso da UE, Viktor Orbán lembra-nos recorrentemente essa verdade. É o exemplo pior de um dirigente europeu. Orbán joga com um pau de dois bicos: por um lado, para mostrar que pertence ao clube das democracias, enquanto membro da UE, e, por outro, para se aproveitar ao máximo dos fundos disponíveis. O cajado em que se apoia chama-se Vladimir Putin. Isso permite-lhe gastar os dinheiros vindos de Bruxelas sem controlos a sério e governar sem respeito pelas regras democráticas e de modo corrupto. A contrapartida que lhe dá força passa por complicar a........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play