Francisco, papa. Por estes dias em Portugal, reafirma-se, em cada olhar, em cada palavra, aquilo que o marca desde o primeiro dia - o desespero. O desespero para poder deixar a sua Igreja francamente melhor do que a recebeu. O desespero de provocar uma proximidade e uma humanidade muito acima do esperado institucionalmente de si. O desespero de reparar, da forma mais definitiva possível, os erros, as violências e as fraudes do passado. O desespero de abraçar aqueles cuja vida é absoluto desespero. E o desespero do tempo, de ter pouco tempo, de nunca saber qual o tempo que resta, para uma missão que definiu de forma simples: dar mais esperança, mais justiça, mais vida a quem vive no desespero.

Por isso fala tanto, por exemplo, dos migrantes que vivem pelo mar a atravessar e morrem no mar por atravessar. E fala desse mercado incensado, dessa economia de exploração que, como diz, mata. E vai a sítios onde não há muitas câmaras de televisão nem palcos luminosos, como o Sudão do Sul, e beija os pés daqueles que, por um dia, por ele, aceitam estar na mesma sala, pensando por momentos em paz. Ou fala diretamente da necessidade de proteger o planeta, responder às alterações climáticas e criar justiça combatendo os abusos e a desigualdade na exploração dos recursos. E fala de frente em relação à diversidade sexual ou à relação da Igreja com as mulheres.

A marca deixada por Francisco será a do desespero e a da urgência. Não a de um desespero pelo reconhecimento, enfatuado, da sua Igreja e das suas supostas virtudes, da sua probidade moral e do seu exemplo. Um desespero que simplesmente se concretiza numa ideia de vida melhor para o outro, o próximo e o distante, um desespero que convoca e que dispensa grandes dogmas e elevadas teologias, porque feito de pessoas e das suas vidas, especialmente nas suas violências, injustiças, fragilidades, incapacidades de assumir o seu destino e os seus sonhos.

A grande virtude de Francisco não é ser papa, é ser um homem. Que adora futebol, que se irrita, que usa o humor sem medo, que dispensa os véus de santidade e o cheiro a cera. Mesmo quem não tenha fé, quem não goste da Igreja, quem abjure qualquer ligeiro vestígio de sacristia ou de obediência, sente-se tocado por este homem, que vive forçosamente fora dos homens, mas que quer ser homem e não um semideus e que assume um discurso de Esquerda, ideológico, claro. E que, com ironia, aceita os donativos de beatos ricos para fazer uma grande festa, onde os destrói. Todo cambia, como se cantava na Argentina nos anos pesados em que por lá era padre. Um dia.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

QOSHE - O desespero é a marca de Francisco - Miguel Romão
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O desespero é a marca de Francisco

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04.08.2023

Francisco, papa. Por estes dias em Portugal, reafirma-se, em cada olhar, em cada palavra, aquilo que o marca desde o primeiro dia - o desespero. O desespero para poder deixar a sua Igreja francamente melhor do que a recebeu. O desespero de provocar uma proximidade e uma humanidade muito acima do esperado institucionalmente de si. O desespero de reparar, da forma mais definitiva possível, os erros, as violências e as fraudes do passado. O desespero de abraçar aqueles cuja vida é absoluto desespero. E o desespero do tempo, de ter pouco tempo, de nunca saber qual o tempo que resta, para uma missão que definiu de forma simples: dar mais esperança, mais justiça, mais........

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