As investigações em curso a altos quadros e antigos acionistas da empresa Altice, independentemente de qualquer justiça que a final venha a ser apurada, fazem estranhamente recordar o fim do defunto grupo Espírito Santo.

A notícia de comissões pessoais a partir de negócios aparentemente ruinosos da empresa, de desvios fiscais pela oclusão de rendimentos e de amizades demasiado verdadeiras para serem tributadas, sendo real, parece apenas mais um episódio de um modelo demasiado repetido de gestão. E pode suscitar, desde logo, algumas perguntas como estas.

Primeiro, a iconografia e os seus limites. A iconografia que parte do empresário e do gestor heroico, sorridente, infalível, um eterno vencedor, um modelo a seguir, cujo sucesso deve demonstrar que, afinal, há justiça neste mundo, mesmo que só para alguns. E este mundo, já agora, essa abstração, deve manter-se sempre no seu lugar, de simples espetador, e não pretender perturbar a certeza daquela imagem.

Por mais fragilidades, erros, absurdos ou crimes que se descubram entre estes gestores infalíveis, entre estes empresários de intensa montaria, o objeto de adoração não pode ser posto em causa. Perguntar é já duvidar e isso é o suficiente para se perder o emprego, o financiamento ou a mera goodwill daquela parte. O ícone máximo não pode permitir dúvidas, mesmo quando finge acolhê-las com um ligeiro esgar de humildade comprada.

Segundo, a opacidade e o seu custo social. Sim, porque grandes organizações, que vivem de vender na imensa praça que é o mundo, trazem também grandes responsabilidades. Mas o truque é sempre o de criar estruturas que se alimentam de si próprias, num enleio sucessivamente revisto de ligações e de subestruturas, de modo a que conhecer seja sempre apenas uma aparência. Uma autofagia que vive para criar espasmos de novidades, numa cadência interminável, apenas possível porque é impossível. Conhece-se uma ideia, uma palavra, um slogan, um produto. Nunca se conhece a realidade. A verdade queima, sempre.

Terceiro, a religião da boa governança, da inovação, da sustentabilidade e seus afiliados, todo um credo e uma seita assentes na novilíngua dos negócios e da venda. No fundo, o poder da linguagem como modo de afastar a capacidade de crítica e de questionamento ou até o poder da visão.

A própria ideia iniciática de "mercado" é uma sugestão, um reenvio para um universo conceptual mais limpo e mais exato, mais puro, menos olfativo do que a realidade. Imaginemos se, em vez de "mercado", usássemos os seus sinónimos da nossa língua, como "feira" ou "praça". A feira interna na União Europeia. As regras da praça. Os princípios da feira. Os gurus da praça. Algo muda, certo?

Nem é necessário recordar como a linguagem é fonte de exclusão e, no outro extremo, de congregação. Com a particularidade de, aqui, no mundo do negócio, se revestir propositadamente de uma legitimidade moral. A governança é boa. A inovação é boa. A sustentabilidade é boa. Tudo é bom. E nada é mau, custoso, difícil - ou injusto, violento ou enganoso. Trabalhar é um privilégio e uma oportunidade. Comprar é uma experiência e um prazer. Ah, as delícias que provêm desta luz perpétua do mercado - quando nos deixamos cair, saciados, a seus pés!

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

QOSHE - Caio, saciado, aos pés do mercado - Miguel Romão
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Caio, saciado, aos pés do mercado

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21.07.2023

As investigações em curso a altos quadros e antigos acionistas da empresa Altice, independentemente de qualquer justiça que a final venha a ser apurada, fazem estranhamente recordar o fim do defunto grupo Espírito Santo.

A notícia de comissões pessoais a partir de negócios aparentemente ruinosos da empresa, de desvios fiscais pela oclusão de rendimentos e de amizades demasiado verdadeiras para serem tributadas, sendo real, parece apenas mais um episódio de um modelo demasiado repetido de gestão. E pode suscitar, desde logo, algumas perguntas como estas.

Primeiro, a iconografia e os seus limites. A iconografia que parte do empresário e do gestor heroico, sorridente, infalível, um eterno vencedor, um modelo a seguir, cujo sucesso deve demonstrar que, afinal, há justiça neste mundo, mesmo que só para alguns. E este mundo,........

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