Partindo do princípio de que não falamos de ocorrências no campo de batalha, com enorme desproporção de forças, sem retirada possível e falta de apetência para fazer prisioneiros por parte do vencedor, nenhuma derrota é definitiva. Pelo contrário, as nossas vidas, a nível pessoal e profissional, são um repositório de momentos em que revezes dramáticos se revelam, mais cedo ou mais tarde, trampolins para atingir novos desafios.

Há menos de meio ano, numa manhã que poderia ter sido imemorável, fui chamado ao gabinete de alguém, cujo trabalho é administrar um grupo de comunicação social. Aquele em que eu dirigia um jornal. Não fiquei surpreendido com o rumo da conversa, tendo em conta a funesta realidade dos números e a necessidade que o meu interlocutor sentia de procurar fazer algo diferente. Mas o início do fim de um ano e meio ímpar na minha carreira, procurando fazer o melhor que sabia e podia, ao lado de profissionais de enorme valor, sempre prontos a contrariar a falta de gente com abundância de trabalho, não se traduziu apenas num acordo de rescisão, negociado com alguém por quem não deixei de ter estima pelo detalhe de ter decidido que eu cessaria de fazer parte de algo a que provavelmente dei mais do que a sensatez aconselharia. O que aconteceu nessa manhã também está na génese da minha presença nesta página, visto que, depois de alguns meses de retempero, passei a fazer parte da equipa do Diário de Notícias, o jornal fundado em 1864 por Eduardo Coelho, testemunha de mais de século e meio da realidade portuguesa, da Monarquia à República, da ditadura à democracia, com páginas escritas por figuras tão díspares quanto António Ferro e José Saramago, e nas quais procuro agora, todos os dias, tornar-me uma nota de rodapé cada vez menos insignificante num percurso monumental.

Dei por mim a pensar nessa virtude das derrotas ao longo dos últimos dias, ao acompanhar alguns desenvolvimentos da política nacional. Veja-se as eleições internas do PS, que tiveram o resultado esperado, com a eleição de Pedro Nuno Santos para secretário-geral, confirmando o favoritismo de quem tinha uma rede de apoiantes disseminada e alimentava desde há muito a aura de sucessor aparente de António Costa, mesmo que tal não parecesse ser do agrado do primeiro-ministro. Apesar da robustez da vitória, recuperando uma expressão da novilíngua pandémica, ninguém pode ignorar que o resultado de José Luís Carneiro tem um sabor muito mais agridoce do que o amargo associado às derrotas. A sua campanha provou que continua a haver espaço no PS para quem prefere ter como parceiros privilegiados partidos que não acreditem em tudo o que o Hamas diz ou que não duvidem que a Rússia invadiu a Ucrânia. E a coragem demonstrada ao avançar em condições adversas, quando outros ficaram pelo apoio (Fernando Medina) ou preferiram pensar noutra coisa (Ana Catarina Mendes), poderá conduzi-lo à liderança do PS no futuro. Ainda que tal cenário pressuponha que o ciclo eleitoral que inclui regionais açorianas, legislativas e europeias corra particularmente mal ao recém-eleito secretário-geral.

Ainda mais flagrante é o caso de Carla Castro, que recusou integrar as listas de candidatos da Iniciativa Liberal depois de a liderança de Rui Rocha tratar de a relegar da segunda para a sétima posição em Lisboa, naquilo que dificilmente poderá ser interpretado como algo diferente de um convite para se ir embora. Também a deputada disputou a liderança do seu partido com um sucessor aparente, naquele caso tendo mesmo o apoio explícito de João Cotrim de Figueiredo. Obteve cerca de 44% dos votos em janeiro, mas as feridas abertas na campanha interna nunca mais sararam e o partido nascido para ser diferente dos demais enveredou por uma lógica de exclusão que conduziu a sucessivas vagas de saídas de membros. Prestes a deixar a Assembleia da República, a não ser que aceite um eventual convite do PSD para integrar as listas enquanto independente, também pode perfeitamente esperar pelo seu momento, que neste caso dependerá necessariamente de resultados eleitorais que interrompam a trajetória ascendente dos liberais.

Grande repórter do Diário de Notícias

QOSHE - As derrotas agridoces de José Luís Carneiro e Carla Castro - Leonardo Ralha
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As derrotas agridoces de José Luís Carneiro e Carla Castro

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20.12.2023

Partindo do princípio de que não falamos de ocorrências no campo de batalha, com enorme desproporção de forças, sem retirada possível e falta de apetência para fazer prisioneiros por parte do vencedor, nenhuma derrota é definitiva. Pelo contrário, as nossas vidas, a nível pessoal e profissional, são um repositório de momentos em que revezes dramáticos se revelam, mais cedo ou mais tarde, trampolins para atingir novos desafios.

Há menos de meio ano, numa manhã que poderia ter sido imemorável, fui chamado ao gabinete de alguém, cujo trabalho é administrar um grupo de comunicação social. Aquele em que eu dirigia um jornal. Não fiquei surpreendido com o rumo da conversa, tendo em conta a funesta realidade dos números e a necessidade que o meu interlocutor sentia de procurar fazer algo diferente. Mas o início do fim de um ano e meio ímpar na minha carreira, procurando fazer o melhor que sabia e podia, ao lado de profissionais de enorme valor, sempre prontos a contrariar a falta de gente com abundância de trabalho, não se........

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