Richard Rorty dizia que tudo é Cultura. Queria dizer que nenhum conceito humano pode ser pensado ou afirmado fora de dado sistema de padrões de linguagem e que estes padrões estão, necessariamente, incluídos num conjunto de pré-conceitos e estes são invenções valorativas, o que equivale a afirmar, modelos culturais. Assim sendo, qualquer ordem política relaciona-se, intrinsecamente, com uma ordem cultural.

A que correspondem o que se convencionou chamar "novas ordens políticas"?

Vivemos desafios novos, de transformação, de mudança. Poderá discutir-se se estes elementos resultam de uma transformação incremental ou se há alteração de paradigma.

É provável que estejamos a viver um conjunto de eventos de alteração paradigmática cuja concomitância gera um sentimento de insegurança nas comunidades políticas, promovendo tanto afirmações radicais - como formas de conservadorismo face ao medo da mudança ou tentativas de imposições revolucionárias - ou a apatia, uma forma de defesa. Pode ainda verificar-se a translação de interesses do domínio da participação cívica/política para outros campos, nomeadamente, da vida privada (desmotivação ou pragmatismo). Também, numa dinâmica de tribalização das relações humanas, fragmenta-se a ideia e o valor de comunidade política e de contrato social, realça-se a ideia de exercício confrontacional, numa nova versão da guerra de todos contra todos. A conjugação de desafios extremos como o colapso ambiental, a inteligência artificial, a substituição dos valores tradicionais de género, desenvolvimento, e hierarquias discursivas; a comunicação nas redes digitais, no fio da navalha entre o pluralismo, a woke culture, os novos fascismos (de direita ou de esquerda) e fundamentalismos, sejam religiosos ou de outra ordem - têm deixado para trás uma parte significativa das populações dos países ocidentais - entaladas, sufocadas, intoxicadas, entre novos valores e as mudanças institucionais, que não conseguem assimilar face à divergência das ordens normativas que conhecem e a sua transformação acelerada.

Estas populações deixadas para trás, na incerteza do seu estatuto social, cultural, económico, político, religioso, são presa fácil de demagogos e autoritários, como se tem demonstrado à saciedade nas eleições democráticas que encaminham estes regimes para o caminho do autoritarismo. Ao mesmo tempo, os novos instrumentos tecnológicos, possibilitam um controlo ainda mais apertado das populações que vivem em regimes totalitários e a indução comportamental dos modelos de consumo, de comportamento, de pensamento e ação de largas faixas de populações de todo o mundo "livre" (independentemente do nível do regime, estatuto social ou económico) por via do monopólio de grandes empresas ou da capacidade de grupos médios ou pequenos manipularem a favor dos seus interesses os processos globais de comunicação e interação, que já não se orientam por critérios de veracidade e autoridade, mas de adesão a valores e a grupos.

É neste caldeirão quente e denso, com múltiplas camadas e ingredientes, que a Cultura, ou melhor dizendo, as Culturas, são determinantes - elementos essenciais na construção das democracias complexas contemporâneas. Democracias em desordem, como a minha biblioteca perdida, que não mais reencontrarei. Viver na desordem é, agora, o desafio. A desordem, elemento de contexto, quadro de construção. A inconstância, elemento constante, os mil perigos, parte do quotidiano. É preciso aceitar que é este o nosso evento de curto e médio prazo, a nossa eventualidade, a nossa ordem, política e cultural.

E sobre ela, construir a mais bela das bibliotecas.

QOSHE - Semanologia - A Cultura e as novas ordens políticas - 2 - Jorge Barreto Xavier
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Semanologia - A Cultura e as novas ordens políticas - 2

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05.06.2023

Richard Rorty dizia que tudo é Cultura. Queria dizer que nenhum conceito humano pode ser pensado ou afirmado fora de dado sistema de padrões de linguagem e que estes padrões estão, necessariamente, incluídos num conjunto de pré-conceitos e estes são invenções valorativas, o que equivale a afirmar, modelos culturais. Assim sendo, qualquer ordem política relaciona-se, intrinsecamente, com uma ordem cultural.

A que correspondem o que se convencionou chamar "novas ordens políticas"?

Vivemos desafios novos, de transformação, de mudança. Poderá discutir-se se estes elementos resultam de uma transformação incremental ou se há alteração de paradigma.

É provável que estejamos a viver um conjunto de eventos de alteração paradigmática cuja concomitância gera um sentimento de insegurança nas comunidades políticas, promovendo tanto afirmações radicais - como formas de conservadorismo face ao medo........

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