O álcool é uma das drogas mais consumidas em todo o mundo e é, em Portugal, uma das principais causas de anos de vida saudável perdidos e de mortalidade evitável. Apesar disso, o álcool está presente de forma permanente em praticamente todas as manifestações da nossa sociedade, sendo extensamente promovido, de forma direta e indireta, pelos diferentes governos, municípios, instituições públicas, organizações desportivas e por uma miríade de entidades a quem competia uma maior reflexão acerca das consequências desta presença pervasiva do álcool em quase tudo.
Vem isto a propósito de uma iniciativa que o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP) e a Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares apresentaram recentemente e que foi agraciada - ainda antes de acontecer e de ser minimamente avaliada - com o Prémio Nacional de Bioética atribuído pela Associação Portuguesa de Bioética na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
O tema gerou compreensível perplexidade junto da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP) que, através de uma carta aberta assinada pelo seu presidente, Gustavo Tato Borges, questiona a pertinência do prémio atribuído numa Faculdade de Medicina, alerta para os conflitos de interesses e convoca para uma reflexão acerca dos riscos de um programa que pretende comunicar o vinho a adolescentes como “um produto cultural, com história”.
A acreditar no comunicado conjunto dos Ministérios da Educação e da Agricultura, o programa centra-se no valor económico e cultural do vinho, não contando com a colaboração da Saúde Pública, que tem responsabilidades nos programas de Saúde Escolar. A ANMSP escreve mesmo que “é incompreensível que o Ministério da Educação autorize a indústria do álcool a promover uma iniciativa junto dos mais jovens, quando tantas vezes negam a contribuição de instituições independentes e idóneas para a implementação de programas que efetivamente sejam de proteção e promoção da saúde da comunidade escolar.”
Independentemente das intenções - que naturalmente não discutimos - há em todo este processo várias questões que importa clarificar antes do arranque da iniciativa. Desde logo, qual a evidência científica que suporta este tipo de intervenção para promoção da literacia em saúde? Quais os riscos e benefícios potenciais do programa? Estão estudados? Existe evidência de eficácia? De que forma deve o vinho ser apresentado em contexto escolar a crianças e adolescentes? Como vai ser promovida a dieta mediterrânea? Qual a evidência que suporta a inclusão do vinho na referida dieta? Tendo sido distinguido com um prémio de Bioética ainda antes de acontecer, certamente que todos estes aspetos foram acautelados e analisados pela Associação Portuguesa de Bioética sendo por isso premente a sua divulgação pública.
É que tudo parece ao contrário do que deveria ser. A Organização Mundial de Saúde tem apelado à remoção da indústria e das organizações de promoção da produção e venda de álcool como parceiros nas campanhas de controlo do consumo de álcool. A referência à “dieta mediterrânica” também parece equívoca tendo em conta que a evidência mais atual parece indicar que, até aos 35 anos de idade, não há qualquer benefício da inclusão do vinho. Mais do que isso, os malefícios (medidos no grande número de mortes associadas ao consumo de álcool entre os jovens) suplantam qualquer potencial - e discutível - benefício do seu consumo.
Preocupa-nos a forma como o álcool é apresentado a crianças e jovens, sobretudo porque não conhecemos evidência de que valorizar o seu “valor cultural e histórico” possa ser gerador dos tais comportamentos saudáveis e prevenir os seus generalizados usos nocivos. A disponibilização dessa evidência é, pois, um imperativo.
A ANMSP levanta muitas questões e, ao que parece, nenhuma teve ainda resposta. Ao apoiar este programa através de uma distinção pública, a Associação Portuguesa de Bioética tem a obrigação de informar acerca dos fundamentos técnico-científicos do mesmo. São esses esclarecimentos que aguardamos.

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QOSHE - “A ética da promoção do álcool” - Pedro Morgado
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“A ética da promoção do álcool”

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04.12.2023

O álcool é uma das drogas mais consumidas em todo o mundo e é, em Portugal, uma das principais causas de anos de vida saudável perdidos e de mortalidade evitável. Apesar disso, o álcool está presente de forma permanente em praticamente todas as manifestações da nossa sociedade, sendo extensamente promovido, de forma direta e indireta, pelos diferentes governos, municípios, instituições públicas, organizações desportivas e por uma miríade de entidades a quem competia uma maior reflexão acerca das consequências desta presença pervasiva do álcool em quase tudo.
Vem isto a propósito de uma iniciativa que o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP) e a Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares apresentaram recentemente e que foi agraciada - ainda antes de acontecer e de ser minimamente avaliada - com o Prémio Nacional de Bioética atribuído pela Associação Portuguesa de Bioética na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
O tema gerou compreensível perplexidade junto da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP) que, através de uma carta aberta assinada........

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