O aforismo popular a que pedimos emprestado o título deste texto faz referência ao clima instável que costuma pontuar o mês mais carismático da primavera: ora “chora”, com chuvas abundantes, ora “ri”, com luminosos dias de sol. O agridoce climático reaparece na política, sempre que se comemora a Revolução dos Cravos. Mas só a falta de memória e a iliteracia política e histórica (que desmentem a ideia de que temos a geração mais bem preparada de sempre, como veremos…) permitiriam concluir que, ao fim de 50 anos, teríamos mais razões para chorar do que para rir. E, no entanto, na cerimónia comemorativa da Assembleia da República, é bem provável que André Ventura reforce a sua tradicional diatribe contra o “fracasso” de 50 anos de democracia. Neste caso, não se trata de falta de memória ou de iliteracia: trata-se de má-fé. Aliás, a própria existência de 50 deputados da direita radical e populista na Casa da Democracia é a representação mais eloquente da superioridade do regime democrático. A eleição de Diogo Pacheco de Amorim para uma das vice-presidências da AR, ao contrário do que parece, é uma celebração do 25 de Abril e uma derrota de um deputado que preferiria viver num regime onde tal não fosse possível. E é isto que um discurso com pedagogia democrática deveria enfatizar, em pleno hemiciclo, nesta quinta-feira.

O 25 de Abril é hoje, porém, uma data distante, celebrada sempre da mesma maneira por gente cada vez mais grisalha. Uma excentricidade folclórica, na perspetiva de muitas das gerações já nascidas depois e que – pensam elas – nada têm a ver com o assunto. Vale a pena, neste ponto, regressar ao tema da “geração mais bem preparada de sempre”. Entre os poucos insucessos destes 50 anos, conta-se, de facto, a falta de investimento, no nosso ensino, nas Humanidades, privilegiando-se a lógica do utilitarismo fácil, oferecido por outras áreas do saber. A falta de compreensão do mundo que nos rodeia e a ignorância da contextualização histórica, bem como a incapacidade de especulação filosófica, são falhas que descambam, mais tarde ou mais cedo, em derivas totalitárias e eleitorais de pensamento único – e isto tanto funciona para a extrema-direita populista como para a extrema-esquerda wokista. Não: as novas gerações não têm assim uma tão “boa preparação”.

E, porém, poderia mostrar-se-lhes como era o País do Estado Novo, nos anos 70. Por mim, gosto sempre de dar o exemplo pessoal, de quando partilhava a sala de aulas da escola primária com coleguinhas de pés (literalmente) descalços. Felizmente, ao contrário do que acontecia noutras épocas, há imagens, fotografias, filmes e sons do País rural, fechado, bisonho e feio onde se vegetava. Há provas que entram pelos olhos dentro. E estatísticas: esperança de vida, mortalidade infantil, analfabetismo, frequência do ensino, assistência na doença, Segurança Social, desenvolvimento económico, rede elétrica, saneamento básico, infraestruturas, cosmopolitismo, liberdade política, de imprensa, de reunião, de associação, de criação. O País teria progredido, ainda assim, sem o 25 de Abril? Esse é um exercício inútil: uma transição democrática e desenvolvimentista jamais seria possível em Portugal – como foi em Espanha – enquanto durasse a Guerra Colonial. Sabe-se hoje que Marcelo Caetano, embora um pouco à socapa, estaria a encetar negociações com os movimentos de libertação africanos. Mas mesmo essas diligências, sem as quais não era possível uma transição pacífica, corriam o risco de soçobrar, com ultras como o general Kaúlza de Arriaga, preparados para um pronunciamento que endurecesse a ditadura. O 25 de Abril foi, pois, mais do que um golpe militar, transformado numa revolução, a única saída possível para a encruzilhada portuguesa. E o País, malgrado os diagnósticos frios de uma certa intelligentsia crítica (ver As Causas do Atraso Português, de Nuno Palma – D. Quixote), conseguiu, tendo em conta o seu ponto de partida, quase medieval, nos dez ou 20 anos subsequentes à integração europeia – que, lá está, também só foi possível graças ao 25 de Abril –, um avanço civilizacional, infraestrutural, educacional e económico que outros europeus, com outros meios e em contexto económico muito mais favorável, demoraram meio século (pós-guerra) a conseguir. É tempo, pois, de retirar carga ideológica ao 25 de Abril e celebrá-lo, sobretudo, como a rutura civilizacional que colocou Portugal na modernidade. Abril ora ri, ora sorri.

* Provérbio popular

Golpe de vista

Vichyssoise, take 2

Como seria de esperar, Paulo Portas, na primeira oportunidade, contra-atacou, depois de Pedro Passos Coelho ter revelado que a Troika não confiava no antigo vice-primeiro-ministro e líder do CDS, parceiro de coligação do seu governo. Afinal, diz Portas, Passos considerava a Troika algo de virtuoso, enquanto ele, Portas, a suportava como um mal necessário. Pela primeira vez, alguém da antiga coligação vem reconhecer, preto no branco, que o antigo primeiro-ministro se sentia confortável indo… “além da Troika”. Alguém que assume, agora, a farda… do polícia bom.

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Abril ora chora, ora ri*

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23.04.2024

O aforismo popular a que pedimos emprestado o título deste texto faz referência ao clima instável que costuma pontuar o mês mais carismático da primavera: ora “chora”, com chuvas abundantes, ora “ri”, com luminosos dias de sol. O agridoce climático reaparece na política, sempre que se comemora a Revolução dos Cravos. Mas só a falta de memória e a iliteracia política e histórica (que desmentem a ideia de que temos a geração mais bem preparada de sempre, como veremos…) permitiriam concluir que, ao fim de 50 anos, teríamos mais razões para chorar do que para rir. E, no entanto, na cerimónia comemorativa da Assembleia da República, é bem provável que André Ventura reforce a sua tradicional diatribe contra o “fracasso” de 50 anos de democracia. Neste caso, não se trata de falta de memória ou de iliteracia: trata-se de má-fé. Aliás, a própria existência de 50 deputados da direita radical e populista na Casa da Democracia é a representação mais eloquente da superioridade do regime democrático. A eleição de Diogo Pacheco de Amorim para uma das vice-presidências da AR, ao contrário do que parece, é uma celebração do 25 de Abril e uma derrota de um deputado que preferiria viver num regime onde tal não fosse possível. E é isto que um discurso com pedagogia democrática deveria enfatizar, em pleno hemiciclo, nesta........

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