Talvez permaneça na lembrança a figura do retirante das secas do Nordeste. Na imagem mais comum ou mesmo na caricatura, eram pessoas que fugiam do desastre social carregando suas poucas coisas em sacos nas costas.

Por vezes, se tornavam pedintes em cidades maiores, quando não eram confinados em campos de concentração, ou pegavam um "pau de arara" a caminho do sul do país.

É como aparecem na tela de realismo quase socialista que Candido Portinari (1903-1962) pintou em 1944. Um velho com um cajado, um casal, uma mulher mais jovem e cinco crianças, todos esquálidos, parecem posar, bestificados, de pé sobre um chão esturricado, sob um céu de urubus.

Eram personagens dos romances da seca, no final do século 19 ou do começo do 20, e presença soturna e frequente na literatura que vai até os 1960.

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Fugiam do abandono. Muita vez sem terra, sem empréstimos ou técnicas para melhorar suas roças, sem remédios, sem escola, viviam longe de tudo, sem estradas, sem uma obrazinha que lhes desse uma cuia d’água para beber.

No drama do Rio Grande do Sul, ouvimos relatos de pessoas que já pensam em desistir da vida em cidades do centro do estado, por dois anos seguidos destruídas pelas enchentes. Parece um exagero pensar nos retirantes das cheias —por ora.

Vive-se melhor no Sul; o país é menos pobre; até plantamos trigo no Nordeste. Mas, para quem perdeu tudo e parentes e amigos, a perspectiva pode ser outra, mesmo que seja difícil deixar família e trabalho, sua terra e sua paisagem.

Depois de sete anos de chuva, podem vir sete de seca, para lembrar a história bíblica de José e o Faraó, que, no entanto, está nos jornais.

O Rio Grande do Sul tem vivido entre tempos tórridos e enxurradas. Os gaúchos fogem para as casas de parentes e amigos que não estão submersas; os que podem escapam para o litoral. Na maioria dos casos, será apenas uma temporada longe do inferno.

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Quando haverá um êxodo de verdade? Pode não ser no Sul. Espalhamos desastre pelo país. Queimamos o abrigo da maior fonte d’água, a Amazônia, assoreamos os rios no Centro-Oeste por causa da ocupação desordenada do cerrado, fazemos o São Francisco minguar, cidades do tamanho de São Paulo e Fortaleza ficaram à beira de não ter o que beber na década passada.

Ainda não temos medida do prejuízo dos gaúchos, casas, estradas, pontes, terras e negócios que se foram. Está cada vez mais evidente, na percepção do risco da vida e do dinheiro, que o custo aumenta, porém.

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Para lembrar algo que agora soa comezinho e desumano, é cada vez mais caro fazer seguro, quando há alguém disposto a bancar o perigo de sinistro, dada a frequência dos desastres.

Viver e trabalhar fica mais custoso. Uma reconstrução teria de ocorrer em outros termos. Evitar a perda irremediável de outras terras deveria ser um plano prioritário. Mas, agora mesmo, o Congresso trabalha para acelerar a destruição.

Profecia doida? Nos anos 1930, um desastre ambiental provocou miséria e migração em massa nos Estados Unidos. A devastação do ambiente das Grandes Planícies (o miolo do território americano) provocou a ruína do solo, seca e nuvens enormes de poeira: o "Dust Bowl". Aconteceu em um país que já era então rico, apesar de passar pela Grande Depressão, e menos ignorante do que nós.

"As Vinhas da Ira" (1939), o romance de John Steinbeck (1902-1968), é uma das memórias daquela desgraça, causada por uma ocupação econômica selvagem, uma história tristíssima de retirantes da terra reduzida ao pó e tomada pelos bancos credores de fazendeiros pobres.

Partem para a Califórnia dourada, que se revela também uma ilusão, Califórnia que, por falar nisso, está cada vez mais seca e queimada.

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Além dos retirantes das secas, teremos os retirantes das enchentes

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08.05.2024

Talvez permaneça na lembrança a figura do retirante das secas do Nordeste. Na imagem mais comum ou mesmo na caricatura, eram pessoas que fugiam do desastre social carregando suas poucas coisas em sacos nas costas.

Por vezes, se tornavam pedintes em cidades maiores, quando não eram confinados em campos de concentração, ou pegavam um "pau de arara" a caminho do sul do país.

É como aparecem na tela de realismo quase socialista que Candido Portinari (1903-1962) pintou em 1944. Um velho com um cajado, um casal, uma mulher mais jovem e cinco crianças, todos esquálidos, parecem posar, bestificados, de pé sobre um chão esturricado, sob um céu de urubus.

Eram personagens dos romances da seca, no final do século 19 ou do começo do 20, e presença soturna e frequente na literatura que vai até os 1960.

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Fugiam do abandono. Muita vez sem terra, sem empréstimos ou técnicas para melhorar suas roças, sem remédios, sem escola, viviam longe de tudo, sem estradas, sem uma obrazinha que lhes desse uma cuia d’água para beber.

No drama do Rio Grande do Sul, ouvimos relatos de pessoas que já pensam em desistir da vida em cidades do centro do estado, por dois anos seguidos destruídas pelas enchentes. Parece um exagero pensar nos retirantes das cheias —por ora.

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