Adormeci no sofá e tive um pesadelo.

Era domingo e Pedro Nuno Santos desfilava numa passadeira vermelho-PS, punho erguido, a rosa desapareceu da iconografia socialista, a mão fechada, esquerda, porque a direita está reservada ao punho do PCP, que é frontal e não lateral, punho erguido, disposto a escrever «um novo capítulo» na governação do PS. Pedro Nuno, que elogiou Costa vezes sem conta nos dois discursos do fim de semana da sua consagração, depressa esqueceu o ainda primeiro ministro nas poucas propostas que anunciou para o país. Vale a pena recordar que, antes de Novembro, Pedro Nuno tinha voltado ao parlamento, estava sentado na última fila da bancada parlamentar e previa ter um programa semanal de «comentário», previsto para durar dois anos, onde se demarcaria e distanciaria do atual governo. A justiça trocou-lhe as voltas e o programa de comentário acabou sem dar tempo ao anunciado sucessor de explicar o que estava este governo a fazer mal e como faria diferente.

Durante dois dias o PS reunido em Lisboa, fez de conta que não está no poder há oito anos e que o país que vemos todos os dias nas notícias não existe. Numa estratégia de fuga para a frente, o tal «novo capítulo» deita para detrás das costas a ainda governação, e lança-se «ao futuro» com «energia renovada».
O PS descobriu agora, depois de dois anos de greves dos professores, que afinal pode repor todo o tempo de serviço, anunciou mil euros para o salário mínimo daqui a quatro anos e decidiu que os apoios às empresas não devem ser «pulverizados» mas concentrados para que, de facto, possam fazer a diferença. Será, portanto, mesmo com a «ajuda da academia, das empresas e das instituições» será o PS, no fim do dia, a planificar a economia e a decidir que setores são estratégicos para o futuro de um país que Pedro Nuno quer de topo. Nem o PCP poderia pedir mais, ser o governo a planear a economia. Na Coreia do Norte este sistema também funciona. Conta a propaganda oficial desse país que a planificação dá muito bons resultados.

O homem que quer «Portugal inteiro» começou por fazer a divisão entre esquerda e direita, os bons e os maus, nós e eles. Para quem quer um pais inteiro, começar o discurso a dividir os portugueses - sim, os portugueses que não votam no PS são de direita, são os maus, são «eles» - e a colocar-lhe etiquetas parece promissor. Inteiro, sim, mas se for «dos nossos».

Francisco Assis, uma espécie de grilo falante do PS que Pedro Nuno conseguiu cooptar para trazer no ombro, ainda lembrou que não se deve fazer uma campanha eleitoral com base no medo. Mas, escutados os discursos dos seus camaradas de partido, o repto não terá grande eco nos dias que faltam até às eleições.

Por fim, Pedro Nuno esclareceu que no seu mandato enquanto secretário-geral, vai ter cinco eleições. Regionais, legislativas, europeias, presidenciais e autárquicas. Cinco. Na frase seguinte, enunciou que quer ganhar «as regionais, as europeias, as autárquicas e as presidenciais, com candidato apoiado pelo PS». Deixou de fora as legislativas. Terá sido lapsus linguae ou, na verdade, nem Pedro Nuno credita que o PS vai ganhar as legislativas?

Horas depois de encerrada a missa, quer dizer, o Congresso do PS, no Porto, num fim de tarde frio e com alguns pingos de chuva, Luís Montenegro (PSD), Nuno Melo(CDS) e Gonçalo da Câmara Pereira (PPM) assinavam os papéis para a fundação da nova SAD, a aliança democrata que recupera ipsi verbis o símbolo e o nome da primeira AD, de 1979. SE fossem vivos, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Teles decerto evitariam ter estado na «cerimónia» ou, sequer, segui-la pela televisão. Da velha AD restam apenas duas coisas, ambas simbólicas: o nome e os partidos. Nada mais. Não há projeto, não há química entre os dirigentes, não há «entusiasmo fervilhante» que só Montenegro conseguiu ver naquela sala fria e acanhada da alfândega do Porto. Cámara Pereira, que a 21 de Dezembro dizia que PSD e CDS tinham líderes fracos e sem visão e, um dia depois, colocava a hipótese de ir para tribunal pela utilização abusiva do nome da aliança, representa o partido com menos votos nas últimas legislativas e é, claramente, um adorno apenas para cumprir o desígnio semiótico do símbolo e do nome. O CDS foi salvo pelo velho parceiro de aliança, o PSD e, mesmo que tudo corra mal, tem garantidos dois deputados, o regresso ao hemiciclo e a constituição de um grupo parlamentar, Nuno Melo só tem razões para sorrir. Cabe a Montengero, além de tudo o mais, ser a cola desta coligação que ele inventou e convencer os portugueses de que a nova AD será tão reformista, progressista e transformadora como foi a de 1979.

Pensava eu, este domingo gelado, que tinha adormecido no sofá e tinha tido um pesadelo.

Afinal, percebi depois, naquela coisa das televisões que dá para andar para trás no tempo, que aconteceu mesmo.

QOSHE - Afinal, estava acordado - Pedro Cruz
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Afinal, estava acordado

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10.01.2024

Adormeci no sofá e tive um pesadelo.

Era domingo e Pedro Nuno Santos desfilava numa passadeira vermelho-PS, punho erguido, a rosa desapareceu da iconografia socialista, a mão fechada, esquerda, porque a direita está reservada ao punho do PCP, que é frontal e não lateral, punho erguido, disposto a escrever «um novo capítulo» na governação do PS. Pedro Nuno, que elogiou Costa vezes sem conta nos dois discursos do fim de semana da sua consagração, depressa esqueceu o ainda primeiro ministro nas poucas propostas que anunciou para o país. Vale a pena recordar que, antes de Novembro, Pedro Nuno tinha voltado ao parlamento, estava sentado na última fila da bancada parlamentar e previa ter um programa semanal de «comentário», previsto para durar dois anos, onde se demarcaria e distanciaria do atual governo. A justiça trocou-lhe as voltas e o programa de comentário acabou sem dar tempo ao anunciado sucessor de explicar o que estava este governo a fazer mal e como faria diferente.

Durante dois dias o PS reunido em Lisboa, fez de conta que não está no poder há oito anos e que o país que vemos todos os dias nas notícias não existe. Numa estratégia de fuga para a frente, o tal «novo capítulo» deita para........

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