Poucos valores têm hoje uma cotação tão elevada como o da confiança. Por uma razão simples, plasmada num dos princípios básicos da economia: a lei da oferta e da procura. Se considerarmos a instabilidade permanente das sociedades modernas como "oferta" e a necessidade de colmatar essa lacuna como "procura", facilmente compreendemos que existe um desequilíbrio notório entra a “desordem” do quotidiano e a necessidade humana de organizar o caos.

A ordem só é possível com regras claras e uniformes, que não deixem dúvidas sobre a legitimidade e a justiça de ações e políticas, sobretudo as públicas, que envolvem a vida de milhares de cidadãos.

Vem isto a propósito da necessidade de regulamentar o lobbying, uma atividade legítima e promotora de confiança, transparência e participação cívica, ao contrário do que muitos defendem.

O tema, que voltou ao Parlamento este mês, com a Assembleia da República a aprovar, na generalidade, os projetos de lei do PS, PSD, IL e PAN – tendo o PSD adiado a discussão na especialidade para a próxima legislatura –, merece uma reflexão profunda, à luz do conceito de confiança, num tempo em que as decisões políticas são constantemente ensombradas pela suspeita da opacidade.

A democracia legislativa não se esgota no ato de votar. Qualquer cidadão individual, ou coletivo, tem o direito de intervir no debate e na tomada de decisões políticas.

E se é suposto confiarmos nos 230 deputados que elegemos para a Assembleia da República, seria ingénuo pensar que estes dominam todos os dossiers sobre os quais são chamados a legislar. Por outro lado, se confiamos neles, porque tememos que recebam, analisem e utilizem informação proveniente de distintos setores da sociedade?

O que está em casa na regulamentação do lobbying é a criação de um registo que torne absolutamente transparente o processo de representação de interesses junto dos decisores políticos. Transparente no sentido de ficar claro – e registado – quem é ouvido, quando, a que propósito e de que forma essa opinião contribuiu para a tomada de decisões concretas. Decisões que interferem na vida de todos os cidadãos. Repito, todos. As empresas não são redutos de máquinas a operar com o único e vil intuito do lucro; são organismos vivos, compostos por pessoas heterogéneas e com diferentes motivações, e “alimento” da empregabilidade, competitividade e expressão económica de qualquer sociedade.

Regular o lobbying é trabalhar para aumentar a transparência, a prestação de contas e a participação da sociedade civil; é promover a qualidade e a eficácia da legislação, a saúde da democracia e a reputação da economia. Regular o lobbying é um sinal de amadurecimento social e acima de tudo amadurecimento democrático.

Criando um registo da atividade e promovendo a existência de uma pegada, fica claro quem diz o quê a quem e com que intuito. Simultaneamente, facilita-se a auscultação dos cidadãos, promovendo uma legislação mais eficaz, que contribua para a lisura das políticas públicas e para o bem-estar da democracia. Por fim, e não menos importante, regular o lobbying é contribuir para uma economia mais sólida. E aqui retomo o conceito de confiança: quem arrisca investir num mercado sob permanente suspeita? Quem aceita entrar num jogo sem conhecer as regras e os seus jogadores?

Regular o lobbying é combater a corrupção e as manobras de bastidores. É reconhecer o elefante no meio da sala e retirá-lo para organizar o espaço. Não, regular o lobbying não é, como já ouvi, o mesmo que colocar um lobo no galinheiro. Esse, aliás, só lá entra enquanto as regras não forem claras.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

QOSHE - Não é lobo, é lobby - Rita Serrabulho Abecasis
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Não é lobo, é lobby

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18.01.2024

Poucos valores têm hoje uma cotação tão elevada como o da confiança. Por uma razão simples, plasmada num dos princípios básicos da economia: a lei da oferta e da procura. Se considerarmos a instabilidade permanente das sociedades modernas como "oferta" e a necessidade de colmatar essa lacuna como "procura", facilmente compreendemos que existe um desequilíbrio notório entra a “desordem” do quotidiano e a necessidade humana de organizar o caos.

A ordem só é possível com regras claras e uniformes, que não deixem dúvidas sobre a legitimidade e a justiça de ações e políticas, sobretudo as públicas, que envolvem a vida de milhares de cidadãos.

Vem isto a propósito da necessidade de regulamentar o lobbying, uma atividade legítima e promotora de confiança, transparência e participação cívica, ao contrário do que muitos defendem.

O tema, que voltou ao Parlamento este mês, com a Assembleia da República a........

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