1 Como já era expectável, as eleições do passado dia 10 de Março produziram um resultado difícil no que à formação de uma solução governativa estável diz respeito. Mas, antes de mais, importa não dramatizar: difícil não é impossível, e na história portuguesa existiram já governos, ditos minoritários, sem que o partido (ou partidos) que o suportam representassem a maioria absoluta dos deputados na Assembleia da República.

Uma das leituras mais comuns, e que é relevante pelo menos contextualizar, é a de uma “viragem à direita”. Só de uma forma muito simplista se pode tirar tal conclusão. Desde logo pelas enormes insuficiências do binómio esquerda-direita. Mas também porque a viragem à direita é largamente alicerçada no grande crescimento do Chega. Ora, é forçoso que se diga que o PSD e o CDS têm muito mais parecenças com o PS do que com o Chega, pelo que falar numa “maioria de direita” até pode ser, na abordagem simplista de que falei, tecnicamente verdade, mas é politicamente irrelevante. Um comentador chegou mesmo a falar na possibilidade de a direita conjuntamente passar a dispor de uma maioria de 2/3 dos deputados, suficiente para rever a Constituição. A matemática dessa conjectura não se verificou, mas importa dizer que mesmo num tal cenário uma revisão constitucional provinda “da direita” seria pura ficção, atendendo ao abismo existente entre o Chega e todos os outros – e basta, para o efeito, olhar para o último projecto de revisão constitucional apresentado pelo Chega.

2 Dito isto, a tentação para a AD procurar apoio, só parlamentar ou outro, no Chega poderia ter sido grande. Foi crucial, por isso, a reiteração de Luís Montenegro na noite eleitoral de que não fará acordos com o Chega, deixando André Ventura a conversar sozinho – o que continua a fazer. E foi importante tanto do ponto de vista dos princípios – dizendo, no fundo, que não vale tudo para governar Portugal, que o fim de chegar ao poder não justifica o meio de se aliar a um partido largamente infrequentável –, como também do ponto de vista partidário – se Luís Montenegro desse o dito por não dito, estaria provavelmente a condenar o PSD a enormes perdas nas próximas eleições.

Porém, o facto de o Chega ser largamente infrequentável não pode impedir-nos de fazermos a devida leitura do seu resultado eleitoral. E é preciso distinguir o partido daqueles que votaram nele. Disse bem no seu discurso da noite eleitoral Pedro Nuno Santos – um discurso, acrescente-se, digno – que em Portugal não haverá um milhão de pessoas racistas e xenófobas. O importante, por isso, é perceber o que leva pessoas não racistas, não xenófobas e não crentes no populistmo, que seguramente apreciam a democracia, a votar num partido deste jaez. As respostas serão múltiplas, mas passarão, no essencial, pela incapacidade que o arco da governação teve em dar respostas aos problemas reais das pessoas – entretido que esteve, muitas vezes, com a táctica política, com a retórica e as parangonas, ou com problemas do domínio do imaginário –, e já agora, pela incapacidade de discutir imigração de forma séria, sem ficar espartilhado entre a extrema-esquerda do “entram todos” e a extrema-direita do “não entra ninguém.”

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Embora pareça que só agora, perante o resultado insofismavelmente significativo do Chega, os partidos do arco da governação tenham aprendido a lição, podiam tê-la aprendido há mais tempo, porque foram avisados em tempo, e porque as experiências de outros países o revelam: veja-se, por exemplo, que quando o Partido Democrata, nos Estados Unidos da América, abandonou os “descamisados”, o eleitorado operário, estes foram atrás de uma alternativa que não o era: Donald Trump.

Por isso, a relação do arco da governação com o Chega deve situar-se em dois planos. No plano parlamentar, o consenso com o Chega deve ser mínimo, o que ocorrerá naturalmente, mas sem cair no erro protagonizado por Augusto Santos Silva, de ostracizar ou deslegitimar o partido, como se um voto nele valesse menos do que um voto noutro partido. O PS em particular foi useiro e vezeiro na utilização do Chega – foi, amiúde, o seguro de vida de António Costa (après moi, le déluge) – como espantalho, acabando por o alimentar (Ana Gomes dixit).

No plano extra-parlamentar, os partidos do arco da governação devem reflectir sobre a insuficiência das suas propostas – em geral paupérrimas, como se percebe pela campanha e pelos programas – para resolver os problemas do eleitorado que, em desespero de causa e por protesto, vota no Chega.

3 De onde virá, então, a estabilidade governativa de que Portugal precisa nos próximos tempos? Do centro, pois claro, de onde sempre veio. Note-se que, mesmo num cenário de enorme perda de votos do PS e em que a AD não aumentou significativamente – quando comparada com os resultados somados de PSD e CDS nas anteriores eleições – o centro representa sensivelmente 60% do eleitorado. Há, por isso duas ideias que importa desmentir: a ideia de que uma solução ao centro implicaria uma diluição dos partidos que o compõem (e uma traição política aos respectivos eleitorados) e a ideia de que uma solução ao centro beneficiaria os extremos em geral e o Chega em particular.

Ninguém espera que dois partidos se apresentem a eleições como alternativa um ao outro e que, findas estas, um assine um cheque em branco ao outro para governar como entender. Mas só por ingenuidade política ou tresleitura deliberada se pode achar que é isto que está em causa quando se sugere que o PS deva prover a governabilidade. Viabilizar a governação não é assinar de cruz tudo o que o partido no poder queira. É, sim, um trabalho de procura de pontes e consensos – a verdadeira essência da política, embora uma arte em desuso –, de cedências mútuas, mas com vista a um objectivo maior, que deve ditar as posições dos partidos, que é o interesse nacional. Ninguém pede à AD e ao PS que abdiquem dos seus programas, mas que procurem, onde for possível (e, por tudo o que já se disse, é-o em muitos sítios) compatibilizá-los. Tem-se colocado a tónica na aprovação do Orçamento de Estado para 2025. O OE é importante, mas não consome toda a política nacional. Será assim tão difícil compatibilizar duas visões de social-democracia, de estado social, particularmente agora que o PS aceitou a ideia geral de estabilidade orçamental?

Os resultados eleitorais têm demonstrado, sistematicamente, um eleitorado português posicionado largamente ao centro – mesmo que algo corroído, por vezes, por crescimentos dos extremos. Extremos esses que tudo fazem para atacar o centro, independentemente de, para uns, o centro ser “a defesa do grande capital”, do “bloco central de interesses” e, para outros, ser “os donos disto tudo”, a precisarem de uma limpeza. Daniel Oliveira usou a metáfora do abraço entre dois náufragos para descrever a possibilidade de AD e PS formarem um bloco central. Porém, estes partidos só naufragarão se se enlearem na táctica, no calculismo e nas jogadas de bastidores e postergarem as soluções necessárias. Se é preciso, como expliquei acima, dar respostas ao eleitorado que não as tem e que, por isso, fugiu para o Chega, essas respostas pressupõem, muitas delas um consenso alargado entre PSD e PS para terem um mínimo de estabilidade: justiça, reforma da administração, reforma da segurança social, revisão constitucional, etc.

4 Em síntese, Portugal deve procurar a sua governabilidade onde está a maioria do seu eleitorado, ao centro, pois só isso levará, simultaneamente, a uma solução estável, capaz de resolver os problemas de fundo – que são muitos – em Portugal e de resgatar para o centro democrático os que dele ameaçam fugir.

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QOSHE - Ao centro, pois claro - Pedro Coutinho
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Ao centro, pois claro

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20.03.2024

1 Como já era expectável, as eleições do passado dia 10 de Março produziram um resultado difícil no que à formação de uma solução governativa estável diz respeito. Mas, antes de mais, importa não dramatizar: difícil não é impossível, e na história portuguesa existiram já governos, ditos minoritários, sem que o partido (ou partidos) que o suportam representassem a maioria absoluta dos deputados na Assembleia da República.

Uma das leituras mais comuns, e que é relevante pelo menos contextualizar, é a de uma “viragem à direita”. Só de uma forma muito simplista se pode tirar tal conclusão. Desde logo pelas enormes insuficiências do binómio esquerda-direita. Mas também porque a viragem à direita é largamente alicerçada no grande crescimento do Chega. Ora, é forçoso que se diga que o PSD e o CDS têm muito mais parecenças com o PS do que com o Chega, pelo que falar numa “maioria de direita” até pode ser, na abordagem simplista de que falei, tecnicamente verdade, mas é politicamente irrelevante. Um comentador chegou mesmo a falar na possibilidade de a direita conjuntamente passar a dispor de uma maioria de 2/3 dos deputados, suficiente para rever a Constituição. A matemática dessa conjectura não se verificou, mas importa dizer que mesmo num tal cenário uma revisão constitucional provinda “da direita” seria pura ficção, atendendo ao abismo existente entre o Chega e todos os outros – e basta, para o efeito, olhar para o último projecto de revisão constitucional apresentado pelo Chega.

2 Dito isto, a tentação para a AD procurar apoio, só parlamentar ou outro, no Chega poderia ter sido grande. Foi crucial, por isso, a reiteração de Luís Montenegro na noite eleitoral de que não fará acordos com o Chega, deixando André Ventura a conversar sozinho – o que continua a fazer. E foi importante tanto do ponto de vista dos princípios – dizendo, no fundo, que não vale tudo para governar Portugal, que o fim de chegar ao poder........

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