Texto publicado originalmente em Ponto SJ

O artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa afirma que esta se baseia na ”dignidade da pessoa humana e na vontade popular”, reiterando o seu empenho na “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Os parágrafos iniciais do nosso texto fundamental fazem também referência – entre outros aspectos – a uma sociedade fraterna (no preâmbulo), a uma organização política que respeite o princípio da subsidiariedade (art. 7.º, n.º2) e que, no âmbito externo, defenda a paz e a justiça na relação entre os povos (art. 6.º, n.º1). Afirma-se igualmente a inviolabilidade da vida humana (art. 24.º, n.º1). Todas estas dimensões se enquadram – e em parte se inspiram – na linha do pensamento social cristão, que os católicos acolhem como “doutrina social da Igreja”. Esta corrente mergulha as suas raízes na tradição bíblica e nos ensinamentos de Jesus Cristo, bem como na reflexão e prática que estes inspiraram ao longo dos tempos. Embora tudo isto seja público e publicado (o recente compêndio “DoCat” é um bom exemplo), houve quem considerasse, com alguma ironia, ser este o segredo mais bem guardado da Igreja…

A nível social, tempos novos geraram coisas novas (rerum novarum) pedindo novas abordagens. No longínquo ano de 1891, o Papa Leão XIII, reflectindo sobre a sociedade consolidada pela revolução industrial, escreveu um texto programático acerca da necessidade de justiça social em relação aos trabalhadores operários, demarcando-se dos materialismos comunistas e capitalistas. O magistério católico foi continuando a reflectir – e a tomar posição – sobre os temas sociais relevantes: em 1937, Pio XI condenou incisivamente o fascismo, o nazismo e o comunismo; João XXIII abordou os temas do progresso social (1961) e da paz mundial (1963); Paulo VI escreveu, em 1967, sobre o justo desenvolvimento dos povos e sua autonomia (e, em 1971, já se preocupava com os riscos da poluição!); João Paulo II abordou temas tão distintos como a dignidade do trabalho humano (1981), a solicitude social da Igreja (1987), a nova ordem mundial nascida da queda do muro de Berlim (1991) e a defesa da vida humana (1995); Bento XVI traçou, em 2009, as linhas de uma atitude cristã diante da crise económica global. Finalmente, o Papa Francisco escreveu sobre a fraternidade e a amizade social (2020), e também sobre o cuidado ecológico do mundo como nossa casa comum (em 2015 e 2023). Estes pronunciamentos são as traves-mestras de uma corrente de pensamento que foi dando origem a numerosas ramificações e outros tantos frutos. Para os cristãos, a justiça social é uma dimensão que decorre da fé em Jesus Cristo, porquanto Ele veio oferecer aos filhos dos homens a dignidade de filhos de Deus, e de irmãos entre si. Esta dignidade engloba necessariamente os âmbitos espiritual e material já que “esperamos uns novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça”, como afirma a segunda carta de S. Pedro.

No âmago do pensamento social cristão está a noção de “bem comum”, que o Concílio Vaticano II (1965) definiu como o conjunto das condições da vida social que permita aos grupos – e a cada um dos seus membros – atingir mais fácil e plenamente o cumprimento da sua finalidade. E a primeira das finalidades é a fidelidade à vida que nos é confiada, pessoal e colectivamente. O conceito de bem comum enriquece-se, então, no respeito pela dignidade única de cada pessoa, na exigência ética de uma solidariedade justa e no respeito pela autonomia própria de cada âmbito da realidade humana (a que se dá o nome de subsidiariedade). Ninguém possui nada sem que primeiro tenha recebido algo, e é por isso que os bens – resultem eles da terra ou do trabalho humano – têm como finalidade última o bem comum, o que implica necessariamente alguma forma de justa redistribuição. Mais do que donos, ultimamente somos administradores. Esta abordagem confere à propriedade privada uma responsabilidade social, sem que isso tenha de significar o colectivismo ou o igualitarismo forçados. Não se pode, porém, descansar diante das desigualdades gritantes do nosso mundo, enquanto a alguém faltar o indispensável para uma vida humanamente digna ou a possibilidade de “pôr os seus talentos a render”. O caminho para essa dignidade passa por políticas públicas e programas de desenvolvimento social, mas também pela assistência personalizada. Se é inteligente perceber o alcance da “medicina preventiva”, é sensato reconhecer a necessidade constante de “medicina curativa”. Há que admitir, com dor e tristeza, que uma multidão de habitantes da Terra – nossos irmãos – vive ferida por guerras, fomes, injustiças, discriminações injustas e vários tipos de pobreza que são desumanos!

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A tradição cristã reconhece diversas concretizações de empenho pelo bem comum: a atenção aos pobres e frágeis; o cuidado da família e da educação; o empreendedorismo e a iniciativa privada que desenvolve, gera riqueza e dá emprego; o envolvimento político e o serviço comunitário; a criação artística e intelectual; o anúncio do Evangelho da justiça e da esperança… Todos estes âmbitos são objecto da solicitude dos discípulos de Cristo, pois “não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”. Por essa razão, o pensamento social cristão dedica-se a reflectir sobre uma grande amplitude de temas: a família como base da sociedade; o trabalho entendido como vocação e profissão, enquadrado numa economia que procura o bem estar e a justiça para todos; uma comunidade política onde o poder seja concebido como serviço, baseado em critérios morais; a comunidade internacional que entende a humanidade como uma só família; a construção de uma paz que garanta as liberdades fundamentais e se afaste da violência; o cuidado pela criação, como prova de amor para com as gerações futuras. Toda esta reflexão ajuda a configurar uma forma de compromisso pessoal e comunitário baseado na virtude da caridade, a que João Paulo II chamou “civilização do amor”. Neste novo ordenamento, a sociedade, o Estado e a Igreja mantêm os seus âmbitos próprios, mas encontram formas de colaboração que revertem em proveito do mencionado bem comum.

É sabido que os meandros da liberdade humana e das suas escolhas – egoístas ou altruístas – originam situações sociais complexas, para as quais não existem soluções simplistas (próprias da retórica demagógica). Contudo, nem por isso a grandeza dos desafios deve alimentar uma atitude céptica ou cínica. Para além de um rumo, requer-se critérios de acção sólidos, como aqueles que o Papa Francisco propôs em 2013 para nos orientarmos na linha da paz social: (i) “o tempo é superior ao espaço” (é mais importante iniciar processos do que possuir “espaços”); (ii) “a unidade prevalece sobre o conflito” (é preciso passar da superfície conflitual à dignidade profunda); (iii) “a realidade é mais importante do que a ideia” (as elaborações conceptuais estão ao serviço da compreensão e condução da realidade, e não o contrário); (iv) “o todo é superior à parte” (somos convidados a superar o dilema entre a esfera global que aniquila e a parte isolada que esteriliza). Para Francisco, o foco na paz social não se deve transformar numa falsa tranquilidade, onde pessoas e problemas são silenciados. “A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão por cima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar aos seus privilégios. Quando estes valores são afectados, é necessária uma voz profética”. O cristão católico é chamado a não ser surdo ao clamor dos pobres, envolvendo-se com a realidade social que o rodeia.

Durante a Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco apontou de novo um rumo para a acção social e política: gerar esperança. Fê-lo diante da elite política, social económica e cultural portuguesa, reunida no CCB. “A boa política (…) não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar”. Na opinião de Francisco – em linha com o que se afirmou acima – a política “é chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos. É chamada a voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação, a investir com clarividência no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre jovens e idosos”. O Papa Francisco concluiu, sublinhando: “como é bom voltar a descobrir-nos irmãos e irmãs, trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e diferenças de perspetiva!”

Poderão alguns pensar que tudo isto não passa de discursos, palavras ditas ao vento que pouco mais são do que sonhos e boas intenções. Sem esquecer numerosas omissões, é forçoso recordar que o pensamento social cristão foi desenvolvendo – para lá do espectro partidário – um modo de “ver, julgar e agir” que encontrou numerosas concretizações, na escala “micro” e “macro”. Uma das mais duradouras é o projecto de construção europeu, que fez ressurgir a Europa da destruição total resultante da segunda guerra mundial. Como recordou o Papa, foi a inspiração cristã de Robert Schuman, Konrad Adenauer e Alcide De Gasperi (e, mais recentemente, de Jacques Delors) que tornou “verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem”. Desse sonho tem vivido a nossa realidade.

Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

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Rumo ao “bem comum”

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14.01.2024

Texto publicado originalmente em Ponto SJ

O artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa afirma que esta se baseia na ”dignidade da pessoa humana e na vontade popular”, reiterando o seu empenho na “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Os parágrafos iniciais do nosso texto fundamental fazem também referência – entre outros aspectos – a uma sociedade fraterna (no preâmbulo), a uma organização política que respeite o princípio da subsidiariedade (art. 7.º, n.º2) e que, no âmbito externo, defenda a paz e a justiça na relação entre os povos (art. 6.º, n.º1). Afirma-se igualmente a inviolabilidade da vida humana (art. 24.º, n.º1). Todas estas dimensões se enquadram – e em parte se inspiram – na linha do pensamento social cristão, que os católicos acolhem como “doutrina social da Igreja”. Esta corrente mergulha as suas raízes na tradição bíblica e nos ensinamentos de Jesus Cristo, bem como na reflexão e prática que estes inspiraram ao longo dos tempos. Embora tudo isto seja público e publicado (o recente compêndio “DoCat” é um bom exemplo), houve quem considerasse, com alguma ironia, ser este o segredo mais bem guardado da Igreja…

A nível social, tempos novos geraram coisas novas (rerum novarum) pedindo novas abordagens. No longínquo ano de 1891, o Papa Leão XIII, reflectindo sobre a sociedade consolidada pela revolução industrial, escreveu um texto programático acerca da necessidade de justiça social em relação aos trabalhadores operários, demarcando-se dos materialismos comunistas e capitalistas. O magistério católico foi continuando a reflectir – e a tomar posição – sobre os temas sociais relevantes: em 1937, Pio XI condenou incisivamente o fascismo, o nazismo e o comunismo; João XXIII abordou os temas do progresso social (1961) e da paz mundial (1963); Paulo VI escreveu, em 1967, sobre o justo desenvolvimento dos povos e sua autonomia (e, em 1971, já se preocupava com os riscos da poluição!); João Paulo II abordou temas tão distintos como a dignidade do trabalho humano (1981), a solicitude social da Igreja (1987), a nova ordem mundial nascida da queda do muro de Berlim (1991) e a defesa da vida humana (1995); Bento XVI traçou, em 2009, as linhas de uma atitude cristã diante da crise económica global. Finalmente, o Papa Francisco escreveu sobre a fraternidade e a amizade social (2020), e também sobre o cuidado ecológico do mundo........

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