A sensação que tenho é a de que estou a poucos segundos de morrer sufocado: o coração comprime-se dentro do peito como se estivesse a ter um ataque cardíaco (pelo menos, é assim que o imagino) e não consigo respirar. Convenço-me que dentro de casa já não há qualquer réstia de oxigénio e, sem tempo sequer para acender as luzes, corro aos tropeções para a janela mais próxima. Corro como se disso dependesse a minha vida porque é precisamente isso que sinto: estou a poucos segundos de morrer. Abro os estores e a janela, coloco a cabeça de fora e aspiro pela boca todo o ar do mundo.

Porra, foi por pouco. Hoje safei-me. Como será amanhã?

A história repete-se. Uma, duas, três, dezenas de vezes, provavelmente mais de uma centena nos meses e anos que se seguem. Sempre a mesma sensação de sufoco letal, sempre a meio do sono. Há semanas em que acontece todas as noites; há noites em que acontece duas, três vezes, tantas que me convenço: se adormeço, é desta que morro de vez. Será isto que acontece às pessoas que “morreram tranquilamente durante o sono”? Voltarei a ver a luz do dia?

Fiz uma bateria de exames para perceber o que se passava comigo. Com o coração, está tudo bem. Com os pulmões também. Dormi numa unidade dedicada a problemas de sono, com uma trintena de elétrodos e sensores ligados à minha pele, e saí de lá sem um diagnóstico. É terrível a incerteza de não descobrimos a causa de algo que sentimos que nos pode matar, não termos um nome para dar às coisas. A verdade é que acabamos por nos conformar. Eu conformei-me. A minha vida agora era aquela.

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Foi só quatro anos depois, no início da pandemia de Covid-19, que soube que tinha ataques de pânico. Habituara-me a viver com alguma ansiedade, mas estava numa fase em que tinha muita dificuldade em geri-la. Os episódios começaram a suceder-se de dia e em espaços onde antes nunca sentira desconforto: em restaurantes, à saída de concertos ou estádios de futebol, até na cadeira do dentista. Procurei ajuda de uma psicóloga e lembro-me de lhe dizer que achava que o que tinha não eram ataques de pânico, porque as pessoas que os relatam falam que sentem que vão morrer. “E o Nelson, o que sente quando tem esses episódios?”, desafiou-me. Senti alguma vergonha por a resposta ter estado à frente dos meus olhos e não a ter encontrado. E por ter demorado quatro anos a procurar ajuda.

Não ajuda ser homem. Até ter escrito em 2021 Os Homens Também Choram (ed. FFMS), que aborda o silêncio emocional a que muitos homens se condenam (o que ajuda a explicar, por exemplo, que três em cada quatro suicídios sejam cometidos por homens), não conhecia um só amigo que tivesse problemas de saúde mental. Publicar o livro foi como abrir uma caixa de Pandora: “Amigo, queria falar contigo. Comecei a ter ataques de pânico no verão”, disse-me um. “Nelson, sempre que precisares de falar, conta comigo. Tenho mais de dez anos disso”, confessou-me outro. “Podes dar-me o contacto da tua psicóloga? Preciso de ajuda”, pediu ainda outro. As conversas foram-se sucedendo e o tabu em redor da saúde mental dos homens foi sendo derrubado. Gastamos tanto tempo e dinheiro em cuidar do nosso embrulho que esquecemos que a parte mais importante do icebergue é aquela que não se vê.

Não é possível saber ao certo como e porque começaram estes ataques de pânico, mas o gatilho parece estar nos atentados terroristas de Paris em novembro de 2015. Nessa noite, passei mais de três horas fechado num restaurante sem saber se sairia dali com vida. Na manhã seguinte soube que uma pessoa que conhecia, e com quem tinha falado horas antes dos ataques, era uma das vítimas mortais da carnificina no Bataclan. Durante meses, recusei-me a ver o que quer que fosse sobre essa tragédia, só queria esquecê-la. Até que um dia cliquei num vídeo sobre o ataque e vi o ninguém deveria ver: pessoas que se atropelavam para tentar fugir por uma saída de emergência, pessoas penduradas em janelas, corpos que jaziam na rua, pessoas que tentam arrastar consigo os corpos de amigos ou companheiros… Só de escrever isto, já me agonio de novo. Foi nessa noite que tive o primeiro ataque de pânico, mas julguei tratar-se de um pesadelo.

Não sei se algum dia deixarei de ter ataques de pânico, porque estou convencido que isto da ansiedade é uma doença crónica e pode bastar um gatilho para me atormentar de novo. Mas sei que os episódios se tornaram cada vez mais raros e, sobretudo, que a terapia me deu ferramentas para lidar melhor com eles. Por vezes, em momentos de maior ansiedade na minha vida, ainda desperto com a mesma sensação de sufoco, mas já não lhe atribuo grande importância: respiro fundo ou bebo um copo de água e volto a adormecer. Raras vezes, o cérebro ainda consegue enganar-me por segundos e salto da cama em sobressalto, mas pelo menos já não corro aos tropeções para uma janela ou uma varanda. Quando vivemos num quinto andar, não é muito tranquilizadora a ideia de acordar com uma janela aberta sem nos recordarmos muito bem de como a abrimos.

Se soubesse o que sei hoje, teria procurado um/a psicólogo/a pelo menos quatro anos antes. Teria mudado mais cedo de vida, privilegiando um maior equilíbrio entre o trabalho e todas as outras coisas que me fazem feliz. Teria deixado há mais tempo de guardar qualquer coisa que tivesse para dizer a alguém, porque tudo o que guardamos acaba por nos corroer por dentro. Felizmente, nunca é tarde para começar. Esta porra não me há-de vencer.

Nelson Marques é escritor. Foi jornalista do Expresso e do Público e publicou nos jornais The Guardian e El Mundo. Venceu o Prémio Ensaio do Clube Português de Imprensa e o Prémio de Jornalismo da Liga Portuguesa Contra o Cancro. É autor dos livros Filhos da Quimio e Os Homens Também Choram (ambos da FFMS) e da coleção Chefs Sem Reservas (ed. Clube do Autor), distinguida nos Gourmand Awards. O Sucesso Está nos Detalhes é o seu mais recente livro.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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Esta porra não me há-de vencer

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20.12.2023

A sensação que tenho é a de que estou a poucos segundos de morrer sufocado: o coração comprime-se dentro do peito como se estivesse a ter um ataque cardíaco (pelo menos, é assim que o imagino) e não consigo respirar. Convenço-me que dentro de casa já não há qualquer réstia de oxigénio e, sem tempo sequer para acender as luzes, corro aos tropeções para a janela mais próxima. Corro como se disso dependesse a minha vida porque é precisamente isso que sinto: estou a poucos segundos de morrer. Abro os estores e a janela, coloco a cabeça de fora e aspiro pela boca todo o ar do mundo.

Porra, foi por pouco. Hoje safei-me. Como será amanhã?

A história repete-se. Uma, duas, três, dezenas de vezes, provavelmente mais de uma centena nos meses e anos que se seguem. Sempre a mesma sensação de sufoco letal, sempre a meio do sono. Há semanas em que acontece todas as noites; há noites em que acontece duas, três vezes, tantas que me convenço: se adormeço, é desta que morro de vez. Será isto que acontece às pessoas que “morreram tranquilamente durante o sono”? Voltarei a ver a luz do dia?

Fiz uma bateria de exames para perceber o que se passava comigo. Com o coração, está tudo bem. Com os pulmões também. Dormi numa unidade dedicada a problemas de sono, com uma trintena de elétrodos e sensores ligados à minha pele, e saí de lá sem um diagnóstico. É terrível a incerteza de não descobrimos a causa de algo que sentimos que nos pode matar, não termos um nome para dar às coisas. A verdade é que acabamos por nos conformar. Eu conformei-me. A minha vida agora era aquela.

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