Com a posse do novo governo, abre-se um outro capítulo na vida política portuguesa, cujo mapa eleitoral sofreu uma mudança profunda, comprovando o acerto da decisão de Marcelo Rebelo de Sousa, ao convocar legislativas antecipadas na sequência da renúncia de António Costa.

Se dúvidas houvesse, os resultados finais foram uma resposta concludente e a perfeita cobertura para o tão reclamado instinto político do actual inquilino de Belém, ao devolver a palavra aos portugueses.

De facto, o que aconteceu na “grande sondagem” de 10 de março foi a revelação exuberante de que o eleitorado, só por equívoco, concedeu ao PS uma maioria absoluta em 2022.

Corrigido o engano, valeu a pena a ida às urnas de uma certa “maioria silenciosa”, que costuma abster-se – por resignação, indiferença ou apatia -, incluindo muitos jovens descontentes, forçados a emigrar, e, em não raros casos, com “canudos” académicos no bolso.

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Perante a vantagem tangencial de mandatos da AD em relação ao PS, e a eloquência do crescimento do Chega, sobressaiu André Ventura, que poderá ser tentado a aumentar os decibéis do discurso, embora correndo o risco de cansar e desperdiçar os trunfos amealhados.

Aliás, Ventura tem-se desdobrado em entrevistas de fundo nas televisões, desde a RTP à SIC. Invariavelmente, fazem-lhe quase sempre as mesmas perguntas, às quais responde com a mesma cartilha. Tem a lição estudada e os entrevistadores pecam pelo excesso de zelo em quererem “encostá-lo à parede”, sem o conseguirem.

O líder do Chega senta-se em estúdio como “peixe na água”, com o à-vontade e a rodagem do antigo comentador de futebol, que foi, e sabe agilizar a palavra com a bagagem de quem guarda um doutoramento em Direito Público. Não é um básico, embora goste de parecer…

E os jornalistas caiem nessa esparrela. Não aprenderam nada.

Por mais contas que façam, as esquerdas sofreram uma derrota histórica, o governo de Montenegro poderá durar mais do que se julga, e convirá a AD não repetir erros anteriores, contemporizando com os fiéis socialistas instalados no aparelho de Estado.

Num volte-face surpreendente, as televisões desataram a incluir comentadores afectos ao Chega (anteriormente proscritos…) nos “painéis de bordo”, e estes não se fizeram rogados, intervindo com manifesto gozo. Revelam-se, contudo, por vezes, excessivamente miméticos em relação ao tom do “chefe”.

Se Pedro Nuno Santos já começou a descolar do “legado” de Costa – que foi a sua “camisa de forças” durante a campanha -, não precisaremos, talvez, de esperar muito até vermos os “novos críticos” a florirem no interior do PS, para apontar o dedo e as culpas do desaire ao novo líder socialista. Bastará que se repita o insucesso nas próximas Europeias…

À defesa, na reunião da comissão política, o “herdeiro” de Costa já começou a “plantar” o novo mito de que, ao lado das “contas certas”, o PS deixou o país com uma “boa realidade económica e financeira”, ou seja, com o baú a abarrotar, graças a um excedente orçamental que, pressurosamente, o Público anunciou como “o maior da história da democracia em Portugal”, suficiente, portanto, para que seja dado “um passo em frente” na valorização da administração pública. “À bon entendeur…”
Oportuno e mais mordaz do que na era da “geringonça”, Rui Rio comentaria, a propósito, que “nada aprendendo com o passado, não falta quem considere que estamos com os cofres cheios. É como alguém que poupou €2.600 achar que está rico, quando deve €260.000 ao banco”. Na “mouche”

Na ressaca eleitoral, um dos “inconformados” com a sua sorte, é, sem dúvida, Augusto Santos Silva, forçado a recolher “à caserna” pela porta baixa, após a humilhante derrota que sofreu no círculo da emigração fora da Europa, afastado pelo Chega, e comprometendo, quiçá em definitivo, as suas (nunca desmentidas) ambições presidenciais.

O partido que mais desprezou e hostilizou no seu desastroso mandato como presidente da Assembleia da República, “devolveu-o” à academia, a tempo de jubilar-se, como tanto disse querer … para júbilo de quem o considera um “activo tóxico” no PS.

Algo que o próprio Santos Silva não parece ter interiorizado. De facto, ao ser entrevistado na Sic Notícias, na noite em que se soube do seu revés eleitoral, veio à tona o seu mal disfarçado azedume, que destilou, enquanto assumia “pessoalmente” a derrota.

Notou-se bem que nunca lhe tinha passado pela cabeça terminar deste modo a sua longa carreira política, de “malas aviadas” para a “sua” Universidade do Porto, depois de ser um fiel servidor, em sucessivos governos socialistas, desde Guterres, a Sócrates e a Costa, sobraçando pastas ministeriais tão díspares como Educação, Cultura, Assuntos Parlamentares, Defesa Nacional ou Negócios Estrangeiros. Um “pau para toda a obra”.

E percebeu-se, também, na mesma entrevista, que não desistiu de concorrer a Belém, embora fosse mais sensato reconhecer que se esgotou o seu “prazo de validade”. Sejamos claros: Santos Silva acabou politicamente, o que é uma bênção para a democracia. E mereceu-o.

Queira-se ou não, a realidade é que se virou a página, tanto para Santos Silva como para António Costa, no meio de uma “meteorologia adversa” para ambos. Com sorte, ainda reaparecem nas televisões, avençados como “comentadores” residentes, o destino do costume para políticos na reforma, que não querem eclipsar-se, ou em início de carreira para se tornarem notados.

Terminada a contagem dos votos da emigração – que suscitou as mais alucinadas e bizarras teorias aritméticas à esquerda, com relevo para Alexandra Leitão e Rui Tavares, dois “artistas” que se acham num bom momento -, o Presidente da República fez o que lhe competia, e indigitou Luís Montenegro, que se tem mantido sigiloso sobre o elenco ministerial, frustrando os media habituados a dar “palpites”.

É pouco invejável a tarefa que espera Montenegro, que terá de enfrentar não só a fogosidade de algumas críticas vindas do interior do PSD – por não ter recuado no “não é não”, relativamente ao Chega -, como o coro dos media, que se aprestam, passado o efeito-surpresa do desfecho eleitoral, para lhe fazer a vida negra…

De facto, o paulatino consulado socialista, permitiu a ocupação intensiva do aparelho de Estado por fiéis “boys” e “girls” , que tudo farão para resistir nessas trincheiras, incluindo os postos-chave dos media, a começar no operador público.

As esquerdas sempre vicejaram nas redacções. Mas, descontado, talvez, o período do PREC, pós 25 de Abril, raramente tiveram o ascendente que hoje é público e notório.

Por isso, e com poucas excepções, inventou-se um falso pluralismo, que começa e acaba à esquerda, embora, às vezes, ardilosamente mascarado ou “travestido” de direita.

Com a curta folga de que dispõe, Montenegro vai precisar de muito talento para evitar as “minas e armadilhas” que lhe vão pôr no caminho, para liquidar à nascença o ressurgimento da direita.

Por seu lado, ao sagrar-se líder da oposição, Pedro Nuno já envergou as novas vestes, para se apresentar como alguém responsável, que até se antecipa e disponibiliza para viabilizar um Orçamento rectificativo.

Claro que o fará desde que o rectificativo acomode, obediente, aquilo que defende e que o anterior governo socialista (que integrou) prometeu sem nunca cumprir, permitindo-lhe depois vangloriar-se como “opositor influente”, que determina as prioridades do governo.

Sucede que enquanto o PS “arrastou os pés” anos a fio – para utilizar o “soundbite” favorito de Pedro Nuno -, com a cumplicidade de muita comunicação social, será agora exigido a Montenegro que avance a “toque de caixa”, sem o benefício de qualquer “estado de graça”.
Com uma nova direcção sindical na CGTP – acossada pelo afundamento eleitoral do PCP, que patrocina há muito a central, como fiel “correia de transmissão” -, e a impaciência de largos segmentos profissionais na administração pública, é de crer que os protestos e as manifestações de rua já estejam na forja.
As esquerdas sempre revelaram uma apetência e uma “queda especial” na organização destes eventos, agora por maioria de razão, afastadas da órbita do poder.

Com este enquadramento, Montenegro e o seu governo, não poderão contar com facilidades, por muito que Pedro Nuno tente dissimular o radicalismo que lhe vai na alma.

Parece provável, contudo, que quem derrubar o governo, sobretudo se o fizer no curto prazo, arrisca-se a ser fortemente penalizado em novas eleições, como já aconteceu no passado.

Por isso, com astúcia, a estratégia, tanto à esquerda como à direita, adivinha-se de desgaste, mas não de ruptura. Seria inconcebível ver Pedro Nuno, de braço dado com Ventura, a derrubar o novo governo. Mas não sobrará a Montenegro “tempo para a pulga”

O desafio que a AD tem pela frente é ciclópico, se não quiser sucumbir na primeira esquina. Escrutínio impiedoso não lhe faltará.

E tão pouco poderá contar com o “pronto socorro” de Belém – que muito ajudou António Costa a contornar frequentes sarilhos -, não obstante serem da mesma família política.

Marcelo desejará aproveitar o tempo restante do segundo mandato presidencial, para sinalizar distâncias e afeiçoar o seu registo para a História. Apesar de ser católico militante, o Presidente sabe que o futuro nem sempre a Deus pertence…

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QOSHE - Novo governo a “toque de caixa” .... - Dinis De Abreu
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Novo governo a “toque de caixa” ....

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26.03.2024

Com a posse do novo governo, abre-se um outro capítulo na vida política portuguesa, cujo mapa eleitoral sofreu uma mudança profunda, comprovando o acerto da decisão de Marcelo Rebelo de Sousa, ao convocar legislativas antecipadas na sequência da renúncia de António Costa.

Se dúvidas houvesse, os resultados finais foram uma resposta concludente e a perfeita cobertura para o tão reclamado instinto político do actual inquilino de Belém, ao devolver a palavra aos portugueses.

De facto, o que aconteceu na “grande sondagem” de 10 de março foi a revelação exuberante de que o eleitorado, só por equívoco, concedeu ao PS uma maioria absoluta em 2022.

Corrigido o engano, valeu a pena a ida às urnas de uma certa “maioria silenciosa”, que costuma abster-se – por resignação, indiferença ou apatia -, incluindo muitos jovens descontentes, forçados a emigrar, e, em não raros casos, com “canudos” académicos no bolso.

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Perante a vantagem tangencial de mandatos da AD em relação ao PS, e a eloquência do crescimento do Chega, sobressaiu André Ventura, que poderá ser tentado a aumentar os decibéis do discurso, embora correndo o risco de cansar e desperdiçar os trunfos amealhados.

Aliás, Ventura tem-se desdobrado em entrevistas de fundo nas televisões, desde a RTP à SIC. Invariavelmente, fazem-lhe quase sempre as mesmas perguntas, às quais responde com a mesma cartilha. Tem a lição estudada e os entrevistadores pecam pelo excesso de zelo em quererem “encostá-lo à parede”, sem o conseguirem.

O líder do Chega senta-se em estúdio como “peixe na água”, com o à-vontade e a rodagem do antigo comentador de futebol, que foi, e sabe agilizar a palavra com a bagagem de quem guarda um doutoramento em Direito Público. Não é um básico, embora goste de parecer…

E os jornalistas caiem nessa esparrela. Não aprenderam nada.

Por mais contas que façam, as esquerdas sofreram uma derrota histórica, o governo de Montenegro poderá durar mais do que se julga, e convirá a AD não repetir erros anteriores, contemporizando com os fiéis socialistas instalados no aparelho de Estado.

Num volte-face surpreendente, as televisões desataram a incluir comentadores afectos ao Chega (anteriormente proscritos…) nos “painéis de bordo”, e estes não se fizeram rogados, intervindo com manifesto gozo. Revelam-se, contudo, por vezes, excessivamente miméticos em relação ao tom do........

© Observador


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