António Costa despediu-se de primeiro-ministro em plenitude de funções com a sua enésima entrevista televisiva. Depois de tantas sem nada dizer ou para dizer, nesta disse tudo o que quis, como quis e quando quis. Deu a mão a Pedro Nuno Santos – fez uma maldade a José Luís Carneiro ao defender um ‘novo impulso’ e a exclusão de acordos de Governo com o PSD– e saiu do caminho, para abrir espaço à nova geração. Ou melhor, para si próprio.
Sim, porque a entrevista de António Costa não foi de despedida nem de balanço dos últimos oito anos no poder – esse está feito –, mas de lançamento da sua candidatura presidencial.

António Costa não quer ficar para a História como o primeiro-ministro que, para manter as contas certas, não fez rigorosamente mais nada – oito-anos-oito e não deixa uma única obra, além de que as funções do Estado, a começar na Saúde e a acabar na Educação, passando pela Justiça, estão todas pela hora da morte – e foi obrigado a demitir-se após as até então inéditas buscas à Residência Oficial de S. Bento onde foram encontrados milhares de euros em notas escondidas entre livros ou em caixas de garrafas de vinho.

De facto, se os lugares executivos estão definitivamente afastados dos seus horizontes – o regresso à política partidária deixa de ser equacionável já este fim de semana, quando passar o testemunho à geração seguinte –, só a Presidência da República pode servir-lhe para juntar o seu nome aos de Mário Soares e Cavaco Silva, os outros dois chefes de Estado e de Governo da democracia portuguesa.

E esse é o plano do cessante primeiro-ministro e líder socialista.
Como ficou muito bem claro nesta sua última entrevista, combinada com as declarações à imprensa nessa mesma manhã e com o ‘número’ ensaiado para o dia seguinte (domingo próximo) à eleição do seu sucessor como secretário-geral do PS.

Na manhã do dia da entrevista, António Costa voltou a assestar baterias contra o Presidente Marcelo e a procuradora-geral da República, Lucília Gago. Costa garantiu que, “se fosse hoje, voltaria a fazer exatamente o mesmo” que fez no dia 7 de novembro – apresentar a demissão ao Presidente da República –, mas não sem acrescentar que os jornalistas deviam era perguntar a Lucília Gago (“quem escreveu o comunicado [da PGR]”) e a Marcelo (“quem dissolveu a AR”) se, “perante aquilo que sabem hoje”, “voltariam a fazer o mesmo”.

Quem o disse, com um sembleante indisfarçavelmente carregado de rancor mas confessando-se «magoado» e «não rancoroso», foi quem sempre excluiu uma candidatura a Presidente da República enquanto se manteve com plenos poderes nas funções de primeiro-ministro.

Ao ataque sem precedentes de um titular de órgão de soberania à Procuradoria-Geral da República, Lucília Gago não demorou a responder, num discurso previamente escrito em que reafirmou a independência do Ministério Público, “uma magistratura com provas dadas e que permanecerá inquebrantável e incólume a críticas desferidas por quem a visa menorizar, descredibilizar ou mesmo, ainda que em surdina ou subliminarmente, destruir”.

Marcelo Rebelo de Sousa respondeu-lhe ontem, reiterando que foi António Costa quem se demitiu e provocou a crise política que o obrigou a dissolver a Assembleia da República e a convocar eleições antecipadas.
Pelo que, obviamente, “não”, não poderia estar arrependido de ter feito o que fez, mesmo considerando que António Costa era o seu preferido para liderar o PS.

Bem ao seu estilo, o Presidente ainda juntou que António Costa continua a ter condições para poder vir a presidir ao Conselho Europeu ou ser “um bom candidato presidencial”.

Se Marcelo não perde uma oportunidade para expor António Costa, este não lhe perdoa nem perdoará a marcação que o Presidente lhe fez no segundo mandato. Por mais que a responsabilidade pela forma como desaproveitou a maioria absoluta conquistada nas urnas seja exclusivamente sua, Costa nunca o aceitará. Ele até reconhece que tem dúvidas e também se engana, até chega a pedir desculpa, mas há de haver sempre alguém para ficar com a fava.

Essa, aliás, é uma das suas maiores habilidades, como a de descartar quem quer que seja que se lhe atravesse no caminho, seja camarada ou amigo.
Ele próprio confessou, de forma fria e lapidar, que “um primeiro-ministro não tem amigos”.

Por isso, o caminho de Costa na política é a partir de agora solitário – ou de mão dada com Fernanda, como vai sair do Largo do Rato no domingo.
Essa foi a mensagem que quis deixar bem vincada em todas as suas últimas intervenções.

Sem resistir, porém, a dar umas pantufadas no PSD e a imiscuir-se na campanha eleitoral, para a qual Pedro Nuno Santos também já o convidou, evidenciando o acerto de agulhas.
Até porque, se uma derrota do PS nas eleições de março será sempre uma derrota de António Costa herdada pelo seu sucessor, uma vitória dos socialistas, difícil mas não impossível, seria sempre do novo líder mas, por poucochinho que fosse, aproveitaria e muito ao cessante.

QOSHE - Soares entregou o cartão, Costa o partido - Mário Ramires
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Soares entregou o cartão, Costa o partido

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16.12.2023

António Costa despediu-se de primeiro-ministro em plenitude de funções com a sua enésima entrevista televisiva. Depois de tantas sem nada dizer ou para dizer, nesta disse tudo o que quis, como quis e quando quis. Deu a mão a Pedro Nuno Santos – fez uma maldade a José Luís Carneiro ao defender um ‘novo impulso’ e a exclusão de acordos de Governo com o PSD– e saiu do caminho, para abrir espaço à nova geração. Ou melhor, para si próprio.
Sim, porque a entrevista de António Costa não foi de despedida nem de balanço dos últimos oito anos no poder – esse está feito –, mas de lançamento da sua candidatura presidencial.

António Costa não quer ficar para a História como o primeiro-ministro que, para manter as contas certas, não fez rigorosamente mais nada – oito-anos-oito e não deixa uma única obra, além de que as funções do Estado, a começar na Saúde e a acabar na Educação, passando pela Justiça, estão todas pela hora da morte – e foi obrigado a demitir-se após as até então inéditas buscas à Residência Oficial de S. Bento onde foram encontrados milhares de euros em notas escondidas entre livros ou em caixas de garrafas de vinho.

De facto, se os lugares executivos estão definitivamente afastados dos seus horizontes – o........

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